Por Celestin Charlier
AS LÍNGUAS DA BÍBLIA
Depois deste relance de olhos, rápido e exterior, sobre o conteúdo da Bíblia, é indispensável examinar as circunstâncias em que os textos chegaram até nós. Que crédito nos poderiam merecer textos velhos de dezenas de séculos, se não pudéssemos analisar o modo como chegaram até nós? O Concílio de Trento declarou que a inspiração diz respeito ao texto original, tal como saiu da pena do escritor sagrado. Portanto, tanto pelo desejo de chegar à verdade como pela própria fé, o cristão é levado a não desprezar os aspectos mais humildes da Bíblia.
Omnis traductor, traditor, diz o ditado. E se é realmente difícil exprimir numa tradução os contornos exatos do texto original e conseguir dar-lhe movimento e cor no caso de uma língua viva, tão próxima da nossa pelas suas características e traduzindo uma mesma civilização, é infinitamente mais difícil fazê-lo com uma língua morta há vinte séculos. O hebraico, por exemplo, tem características muito especiais e é estruturalmente diferente das nossas línguas ocidentais. Nada pode, pois, substituir o conhecimento da língua original.
Infelizmente, raras são as pessoas que hoje podem ler a Bíblia no texto original, embora no que se refere ao Novo Testamento fosse possível fazê-lo, se nas escolas se iniciassem as crianças no estudo dessa magnífica herança humana e cristã que é a Bíblia, em vez de restringir os seus estudos ao comentário de meia dúzia de obras de um ou dois séculos pagãos.
Não se trata, evidentemente, de reduzir o valor de Homero ou Sófocles, que têm um valor humano e, por consequência, pré-cristão e eterno. Mas por que motivo se não há de oferecer à expectativa angustiante ou ao orgulho hermético da civilização greco-romana a resposta de Paulo ou a do Evangelho de São João? O fato de não terem empregado mais corretamente o optativo [um dos casos do idioma grego] será suficiente para os não incluir entre os rivais, geniais produtos do espírito, mesmo sob o ponto de vista puramente humano? E que dizer da sua origem final? Não é angustiante verificar que se pretende educar “cristãmente” uma criança iniciando-se apenas nas concepções da mitologia pagã, sem sequer mencionar – a não ser num curso de religião mais ou menos árido – as obras-primas do patrimônio cristão?
Seria este o único resultado prático e justo do estudo do grego. Pois, se com os conhecimentos que têm, os alunos de humanidades nunca estarão à altura de apreciar Homero, todos podem tornar-se aptos a ler correntemente o Novo Testamento na sua língua original.
Quanto ao estudo hebraico, será sempre uma exceção. No entanto, o conhecimento indireto do caráter próprio desta língua pode permitir a quem lê assiduamente a Bíblia, familiarizar-se com ela e conhecer as suas particularidades.
A Bíblia foi escrita em três línguas: o hebraico, o aramaico e o grego. O hebraico é a língua da maior parte do Antigo Testamento. O aramaico só se encontra em alguns capítulos (Esdras 4, 8-6, 18; 7, 12-26; Daniel 2, 4b-7, 28; Jeremias 10, 11;Gênesis 31, 47). Mas foi ela, sem dúvida, a língua original de vários textos, que se conservaram em grego, do livro de Tobias, por exemplo, do Evangelho segundo São Mateus, e talvez mesmo do Evangelho de São João. Além disso, foi a língua materna de Jesus, dos seus contemporâneos e das primeiras comunidades cristãs.
O grego é a língua original de alguns livros do Antigo Testamento: Sabedoria, II dos Macabeus; e de todo o Novo Testamento (provavelmente excetuando São Mateus). É também a língua em que se conservaram vários livros cujo original se perdeu:Judite, Eclesiástico, I dos Macabeus, redigidos primeiramente em hebraico (o texto hebraico do Eclesiástico foi encontrado há alguns anos), Tobias e Mateus, escritos em aramaico. Mas estas “traduções” parecem terem sido refundidas muitas vezes e com bastante liberdade.
O hebraico e o aramaico são línguas estreitamente aparentadas e pertencem ao mesmo grupo semítico. Este grupo compreende línguas que, comparadas com as línguas modernas do Ocidente e mesmo com as línguas indo-europeias, apresentam profundas e comuns pergências. De resto, existem mais afinidades neste grupo de línguas do que entre as indo-europeias. O árabe moderno, por exemplo, está mais próximo do antigo hebraico que o russo do francês.
Todas as línguas semíticas têm de comum o seguinte: o relevo constante das consoantes nas palavras; a permanência das raízes, quase sempre de três consoantes, nas formas verbais ou nominais, por mais variadas que sejam; uma extraordinária riqueza de flexões verbais ou nominais (o hebraico tem, por exemplo, sete modos para exprimir as persas modalidades da ação expressa pelo verbo); uma notável pobreza sintática pela quase inexistência da subordinação; falta de adjetivos; e certa imprecisão de variações temporais, pois o semita não classifica os fatos em passados, presentes e futuros, mas em realizados (perfeito) e não realizados (imperfeito), que tanto traduz o passado como o futuro.
Tais diferenças, porém, em relação às nossas línguas, mais não são do que a expressão das diferenças do gênio próprio de cada uma. Os melhores conhecedores do hebraico sublinham sem hesitação a “pobreza” das línguas semíticas, quando comparadas com o grego, por exemplo, e os exegetas desculpam a imprecisão dos autores bíblicos, invocando dificuldades de análise e abstração. É materialmente exato o que eles dizem, mas esta afirmação, considerada de um ponto de vista unilateral e estrito, desconhece a verdadeira seiva do gênio semítico. Comparar Isaías a Platão, por exemplo, é ignorar a literatura bíblica, porque representam dois mundos de pensamento e de expressão muito distantes. Não é possível reconstituir aqui o ambiente próprio destes dois mundos sem cair na generalização. Para ser tratado com o devido desenvolvimento, este assunto exigiria muitos capítulos. Mas o próprio leitor pode proceder aos estudos para isso necessários, se é que procura aqui apenas uma orientação de caráter geral.
O gênio grego, ou se assim o queremos, ocidental – porque continua a ser o nosso – é essencialmente abstrativo e de conquista pelo espírito. Classifica o mundo inteiro – o mundo material, e depois, o mundo das ideias –, que ele constrói à semelhança do primeiro e com linhas claras e distintas. Por mais especulativo que seja, torna-se facilmente utilitarista. Entra, sem hesitar, nos maiores extremos do hiper-espiritualismo ou do materialismo do racionalismo ou do ceticismo. A sua rigorosa dialética traduz-se em línguas expressivas; exige-as explícitas, exatas, precisas, diferenciadas. O gênio ocidental é, em suma, o herdeiro e o poderoso renovador da primeira civilização humana do homo faber. Poderíamos chamar-lhe gênio racional ou científico. Criou uma técnica de pensamento.
O gênio semítico, pelo contrário, enquadra-se no prolongamento natural da civilização religiosa e artística do homo sapiens. É um gênio concreto e interiorbem impregnado da influência do deserto em cuja vizinhança se desenvolveu. Só se interessa profundamente pelos valores de vida. É claro que atribui grande importância ao pensamento, porque é contemplativo; mas o seu pensamento, essencialmente vivo e concreto, é mais intuitivo que lógico, mais receptivo que conceitual. Despreza, como coisa vã, o jogo do espírito dos gregos, que arquiteta sistemas sobre análises abstratas. É um gênio sintético e desdenha a expressão.
Por isso, não podemos estranhar as características do seu instrumento linguístico. A firmeza do consonantismo revela uma ligação profunda entre a ideia e a imagem concreta. A pobreza sintática não resulta, como tantas vezes se diz, da falta de firmeza ou do sentido do pormenor. Reflete, antes, certo desdém pela expressão abstrata.
O gosto pelo concreto dá ao semita o sentido da relatividade das palavras. Para ele, a linguagem não deve pretender exprimir mas apenas evocar, e as palavras mais não são que uma parte desta evocação: os gestos, a entoação, as pausas e mesmo os silêncios desempenham um papel essencial na linguagem. Em vez de inventar formas de subordinação, impotentes para expressar a riqueza dos liames que unem as coisas, o espírito semítico prefere repetir, subentender, simbolizar. Assim desenvolveu uma espécie de franja à volta das palavras, cujo ritmo interior, inexprimível, é regulado normalmente pela sonoridade.
Foi este em parte o objetivo dos pintores impressionistas e de poetas como Péguy: a evocação do pensamento realiza-se espontaneamente pela acumulação de evocações sucessivas, que, separadas, se entrechocam, e que, no seu conjunto, se integram com tinta mais suavidade quanto é certo que não foram procuradas.
É um fato que estas línguas são impróprias para exprimir pensamentos abstratos; mas conseguem comunicar, melhor que as outras, a emoção do pensamento concreto e vivo. Abandonemos, pois, o mito da pretensa barbárie semítica.
Escusado será dizer que nem todas as línguas deste grupo tiveram o mesmo valor e a mesma sorte. O hebraico ocupa um lugar muito modesto entre elas. Dá-se este nome à língua falada pelos israelitas desde a sua entrada em Canaã até aos primeiros séculos da nossa era. A sua origem é bastante misteriosa, porque além do Antigo Testamento, só raríssimos documentos nos restam para o seu estudo. Mas é muito provável que tivesse sido a língua dos cananeus. Os israelitas tê-la-iam adotado, julgamos, logo que se fixaram em Canaã, na época patriarcal, ou, mais provavelmente, depois da conquista, de acordo com a lei clássica que submete o vencedor militar à civilização do vencido mais evoluído.
No século VIII, no tempo de Isaías, o hebraico parece ter atingido o seu pleno desenvolvimento. E a partir do exílio, aparece-nos cheio de aramaísmos. Por alturas dos séculos IV e III, o aramaico ganhava terreno, dia a dia, na linguagem falada. E já antes da era cristã suplantava totalmente o hebraico, que se tornou uma língua morta e exclusivamente religiosa.
Não quer isto dizer que o aramaico seja uma evolução do hebraico como o português o é do latim. O aramaico deriva da mesma fonte que o hebraico, mas é uma língua independente. É mais antigo e foi muito mais bem sucedido.
Disse-se acerca de Abraão, que era arameu, porque o seu clã proveio do importante grupo de tribos seminômades que como tais eram conhecidas na orla de deserto que se estende desde a Mesopotâmia à Palestina, desde o terceiro milênio, e que ali procuravam sedentarizar-se sob a forma de reinos efêmeros. O seu nomadismo, a superfície dos seus sucessivos habitats, o papel que desempenhavam nas transações internacionais, tudo contribuiu para fazer da sua língua, aliás mais rica e delicada, uma espécie de linguagem universal no mundo semítico até a expansão árabe.
O aramaico foi, sem dúvida, a língua falada pelos Patriarcas. Durante o exílio e depois dele, os judeus viam-se cada vez mais ligados pela força das circunstâncias aos povos vizinhos; e de tal modo aprenderam o aramaico que esqueceram o hebraico. Escusado será dizer que se escrevia em vários dialetos. No tempo de Jesus, o dialeto judaico era diferente do galileu. No entanto, não existiam diferenças muito profundas entre esses dialetos, nem mesmo entre o aramaico e o hebraico. Era fácil ver que tinham um fundo comum.
E apenas uma palavra sobre o grego bíblico. Chama-se assim a língua do Novo Testamento e a da tradução do Antigo, conhecida sob o nome de tradução dos Setenta. Outrora, pensava-se que as numerosas particularidades do grego destas obras em relação ao grego clássico fossem devidas à influência dos originais hebraicos. Esta influência existiu, é certo. Mas a descoberta de numerosos papiros gregos datados das proximidades da era cristã, revelou que se trata, sobretudo, da forma especial que o grego tomou quando da expansão helênica nos tempos de Alexandre. E por isso se chamou a esta forma, koiné, isto é, língua comum. É akoiné vulgar que nos aparece no Novo Testamento, salvo na Epístola aos Hebreus, e em São Lucas (Evangelho e Atos) que se preocuparam em escrever numa koiné mais literária.
A koiné caracteriza-se pela tendência para simplificar a morfologia e a sintaxe. Evita as formas irregulares, abandona os modos arcaicos, como o optativo, e prefere as construções simples. E por este motivo está menos afastada das línguas semíticas que nela influíram.
No entanto, seria errôneo querer explicar pela koiné, como alguns exegetas pretendem, todas as particularidades da Bíblia grega. Os escritores do Novo Testamento sofreram uma influência muito profunda, mesmo preponderante, da literatura hebraica, de cujo espírito participam. Por mais que Paulo tentasse construir períodos gregos, caía inconscientemente no ritmo semítico; e o Evangelho de São João, embora escrito em koiné correta, pode talvez ser considerado a obra-prima do gênero literário semítico. Por isso mesmo, torna-se indispensável, sobretudo para compreender o Novo Testamento, penetrar bem no espírito semítico. Até sob este ponto de vista, o Antigo Testamento é o necessário iniciador do Novo.
(continua...)
Nenhum comentário:
Postar um comentário