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segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A Bíblia: o livro e os livros


Por Celestin Charlier





Afinal, como foram escolhidos o livros da Bíblia?

Formam uma unidade? 

E como o texto foi determinado? 

O que foi levado em conta?

As diferenças nos manuscritos prejudicam a interpretação?




Numa página célebre do Gênio do Cristianismo, Chateaubriand descreveu a desventura do leitor que pela primeira vez aborda a Bíblia. Mostra-o voltando as páginas e completamente perturbado ante essa sucessão de livros de aspectos tão persos. Aqui e ali reconhecem-se de passagem alguns episódios, retidos da História Santa, Mas, a par disso, quantas páginas bizarras, incoerentes ou pura e simplesmente incompreensíveis! Descobre a existência dos Profetas, dos livros Sapienciais. Pasma também ao encontrar no mesmo volume o Evangelho e as epístolas de São Paulo que conhecia pelos extratos que delas dá o missal. E quê, isso também faz parte da Bíblia? Porque a maioria dos católicos crê que a palavra Bíblia não designa senão o Velho Testamento.

É, portanto, indispensável, antes de abordar a Bíblia, ter uma ideia sumária do seu conteúdo e das condições materiais em que ela nos chegou.




OS LIVROS DA BÍBLIA

A palavra “Bíblia” é a tradução portuguesa duma palavra grega que significa “Livro”. Foi, ao principio, usada pelos judeus de origem grega para designar os seus textos sagrados; mas quando a Igreja lhe acrescentou os primeiros escritos cristãos, fez incluir neste termo o conjunto dos livros por ela reconhecidos como inspirados. Por este meio, pretendia a Igreja exprimir a sua fé e mostrar que este conjunto de livros constitui para ela o Livro por excelência.

Com efeito, mesmo sob o ponto de vista material, nenhum livro teve um sucesso tão prodigioso. Desde os primeiros séculos da nossa era, a Bíblia vem sendo editada vezes sem conta, e traduzida em todas as línguas. Existem ainda, nos nossos tempos, dezenas de milhares de manuscritos bíblicos, enquanto que das obras clássicas mais célebres só dispomos de algumas centenas.

Estes manuscritos estão redigidos em hebraico, grego, latim, siríaco, árabe, armênio, georgiano, eslavo antigo, gótico, copta, sem falar dos dialetos da Idade Média, como o baixo-alemão, o flamengo, o saxão, o provençal, o veneziano, o toscano, o catalão, etc. E, nos nossos dias, apesar da enorme difusão da imprensa, ainda a Bíblia ultrapassa de longe a tiragem dos livros mais pulgados, em quase todas as línguas da terra. Na verdade, tendo em conta esta supremacia absolutamente incontestada, a Bíblia continua a ser de fato, o livro por excelência e o testemunho material, neste nosso século de ateísmo, da soberania da Palavra pina.

A Bíblia divide-se em duas partes: o Antigo Testamento e o Novo Testamento, O termo testamento é um pouco sibilino, É a tradução duma palavra grega que tanto pode designar contrato, como testamento. O termo era usado um pouco a esmo pelos judeus de língua grega num sentido religioso bastante complexo: significava o desígnio pelo qual Deus quis unir-se à humanidade e constituí-la herdeira dos seus benefícios.

O cristianismo distinguiu duas etapas na realização histórica deste dom: a aliança parcial feita entre Deus e o povo de Israel sob a égide de Moisés, e a nova aliança que a antiga preparava, e que, fundada por Cristo, se estendeu a toda a humanidade. A pisão dos livros da Bíblia corresponde a estas etapas. O Antigo Testamento agrupa todos os livros inspirados, escritos antes da missão pública de Cristo e reconhecidos como pinos pelo povo judaico. O Novo Testamento engloba os escritos de personalidades notáveis entre os discípulos de Jesus, cuja autoridade pina reconhece.

Antigo Testamento é, portanto, o conjunto dos livros Sagrados de origem judaica. A Igreja Católica considera como tais, 45; os protestantes reduzem o número a 38. A diferença deve-se a que, no tempo de Jesus, nem os próprios judeus estavam de acordo quanto ao seu número. Os judeus da Palestina só reconheciam como autênticos, trinta e oito escritos em hebraico; os judeus de língua grega, sobretudo em Alexandria, acrescentavam-lhe sete outros escritos geralmente nesta língua.

A Igreja Católica, que se desenvolveu sobretudo nas comunidades judaicas do mundo helenístico, recebeu dela a Bíblia grega. Preocupado em restaurar a beleza primitiva, o protestantismo rejeitou como “apócrifo” tudo o que se não conservou em hebraico, a saber os livros de Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruch, I eII dos Macabeus, não falando já dos aditamentos gregos de Ester. Nós, os católicos, chamamos por vezes a estes livros deuterocanônicos, por oposição aos outros denominados protocanônicos porque só mais tarde se integraram no que se chama o Cânon das Escrituras. Mas o Concílio de Trento declarou-os todos inspirados.

Os judeus distinguiam três partes principais na sua Bíblia: a Lei, os Profetas e os Escritos. Esta visão é mencionada no Novo Testamento (Lucas 24, 27 e 44) e mesmo 130 anos antes de Cristo, no prólogo grego do Eclesiastes. E, de resto, corresponde, mais ou menos, à formação sucessiva de três grandes compilações.

A primeira destas compilações chama-se Torá ou Lei. Agrupa, sobretudo, os textos legislativos do judaísmo, integrados no seu conteúdo histórico. É uma só e mesma obra, mas dividida em cinco livros; daí o ter sido chamada de Pentateuco. O Gênesisrelata, em primeiro lugar, as velhas tradições de Israel sobre as origens da humanidade (capítulos 1-11); vêm depois as da nação israelita com as narrativas sobre Abraão, Isaac, Jacob e José, O Êxodo descreve a obra de Moisés e apresenta a propósito vários textos legislativos. O Levítico é praticamente um código de prescrições rituais, embora a sua publicação seja integrada na narrativa da estadia no deserto. Com os Números, retoma-se a história da peregrinação para a Terra Prometida, interrompida por algumas séries de leis. O Deuteronômio, por fim, refere-se aos acontecimentos que precedem a entrada na terra de Canaã e é apresentado como o testamento espiritual de Moisés; as últimas instruções do legislador são parafraseadas neste livro com um fervor especial e num tom de intensa objurgação moral, Assim é a Torá.

A segunda compilação tem menos unidade e intitula-se Os Profetas. O leitor pensará certamente que engloba as narrativas dos Profetas. Mas, antes disso, apresenta a maior parte dos chamados livros históricos, que têm um caráter muito diferente. Devemos, porém, notar que estes livros relatam a história do período em que mais se desenvolveu a atividade profética desde a entrada em Canaã até o exílio. Além disso, estes livros emanam de círculos literários inteiramente ligados ao profetismo.

O primeiro, Josué, e mesmo o segundo, os Juízes, são incontestavelmente a continuação dos cinco livros do Pentateuco, pelo seu tema e pelo seu estilo; por vezes, têm sido unidos a estes sob o nome de Heptateuco. São, no entanto, puramente históricos; um narra a conquista, o outro o período confuso que se segue. Com os chamados dois livros de Samuel (que formam um só) assistimos às origens da realeza graças às narrativas acerca de Saul e David. Os dois livros dos Reis, que também formam uma só obra, continuam a narrativa de Salomão, no exílio: e esta é a primeira série dos “profetas”. A segunda série engloba os oráculos proféticos em mais quatro livros: Isaías, Jeremias, Ezequiel e um livro que engloba os doze “profetas menores”, assim chamados em atenção à brevidade dos seus escritos. Se a segunda compilação é menos homogênea do que a primeira, a terceira é completamente heterogênea, e a sua unidade só pode concluir-se do fato de terem a mesma origem, pois a quase totalidade dos textos só ficou acertada após o exílio. Uns, como as Crônicas, que formam uma só e mesma obra com Neemias-Esdras, assemelham-se ao gênero histórico e descrevem em traços largos os escritos anteriores desde a criação, para referirem mais detalhadamente as fases da Restauração após o exílio; Rute (colocado antes de I Samuel nas nossas Bíblias, porque nos dá a genealogia de David), Tobias, Judite e Ester têm um caráter episódico. O I dos Macabeus é uma obra de grande valor que conta a epopeia nacional do segundo século; deve distinguir-se inteiramente do II dos Macabeus que é apenas um resumo edificante, escrito em grego, duma obra mais vasta e perdida, onde se narravam certos episódios impressionantes da luta. Um outro grupo, muito diferente deste e muito homogêneo, é constituído pelos chama dos livros sapienciais, assim chamados porque agrupavam sentenças morais. O mais antigo, Os Provérbios, tem, sem dúvida, um fundo anterior ao exílio. Jó e o Eclesiastes pertencem ao terceiro século antes da nossa era. O Eclesiástico conservado na tradução grega do neto do autor, é um pouco anterior aos Macabeus no princípio do segundo século: o livro da Sabedoria foi escrito em grego pouco antes da era cristã.

A coleção dos Salmos, pelo conteúdo e pela forma que apresenta pode enquadrar-se neste grupo sapiencial, embora a sua finalidade litúrgica, no Templo, lhe confira um caráter próprio. Também podemos incluir no mesmo grupo, as Lamentações, atribuídas a Jeremias, e o Cântico dos Cânticos. Resta, finalmente, uma última obra que as Bíblias católicas incluem nos Profetas, duas que entre os judeus fazia parte dos escritos, por representarem um gênero literário muito diferente: o Apocalipse de Daniel.

Os católicos habituaram-se, desde o século XIII, a substituir a divisão hebraico em três partes por uma outra mais de acordo com o seu conteúdo. Numa primeira série intitulado “livros históricos” estão incluído o Pentateuco, os livros de Josué,Juízes, Rute, Samuel, Reis, Crônicas, Neemias-Esdras, Tobias, Judite, Ester, e I e II dos Macabeus. Um segundo ciclo, “didático”, engloba os livros sapienciais, os Salmos e o Cântico dos Cânticos. A lógica deste agrupamento é discutível, porque põe entre os livros históricos todos os escritos legislativos e obras de caráter moral, como Tobias, Judite e Ester. Faz também do Cântico dos Cânticos um livro didático e liga Daniel aos Profetas, com os quais só artificialmente se assemelha. Por conseguinte, é preferível a antiga divisão judaica que parece respeitar melhor as fases concretas da formação das compilações.

O inventário dos livros do Novo Testamento é muito mais fácil de fazer. Compreende quatro escritos históricos sobre Jesus, chamados Evangelhos; uma narrativa acerca dos primeiros tempos da igreja: os Atos dos Apóstolos; as 14 Epístolas de São Paulo; e 7 Epístolas chamadas católicas, porque algumas delas são dirigidas a um grande número de comunidades: duas de Pedro, uma de Tiago, uma de Judas e três de João; e finalmente, o Apocalipse. Ao todo, são 27 obras, na maioria modestas no tamanho e algumas até muito reduzidas.

A classificação de todos estes escritos é difícil, pela grande variedade que apresentam. Muitas vezes, retoma-se a divisão em livros históricos (4 Evangelhos e Atos), didáticos (São Paulo e Epístolas católicas) e proféticos (Apocalipse), Mas também aqui a divisão é bastante deficiente. Põe um escrito tão doutrinal como é o Evangelho de São João em pé de igualdade com os outros evangelhos, separa as obras do mesmo autor e dá ao Apocalipse uma marca que não lhe ficou melhor que ao livro de Daniel.

Portanto, podemos apresentar uma divisão menos abstrata, distinguindo, primeiramente, os evangelhos sinóticos, que seguem uma marcha muito paralela. Em seguida, o grupo paulino com os Atos, de que o herói principal é São Paulo, narrados pelo seu discípulo Lucas, e as 14 Epístolas que se ligam ao nome do grande Apóstolo. Uma terceira compilação a que se dá o nome de joanina, compreende as obras do discípulo bem amado: o Evangelho de São João, as suas três epístolas e o Apocalipse. Por fim, uma quarta compilação reúne as Epístolas católicas. Esta divisão oferece a vantagem de respeitar o caráter concreto de todos os escritos e reflete também melhor as fases principais da formação do Novo Testamento.

Como vemos, não há nada mais variado que o conteúdo da Bíblia. Todos os gêneros estão nela representados como, de resto, todas as épocas duma literatura. O que lhe dá unidade é pertencerem a uma mesma corrente religiosa e a uma mesma cultura humana. Todos os textos bíblicos, mesmo os do Novo Testamento, estão ligados à literatura judaica e são mesmo o que ela nos legou de essencial.

No fim do judaísmo e nos começos da Igreja, havia outros escritos, que não chegaram até nós. E alguns que se conservaram não foram incluídos no conjunto dos livros inspirados. Temos, pois um número considerável de obras, chamadas apócrifas pelos católicos e pseudoepigráficas pelos protestantes. As que se referem ao Antigo Testamento, datam geralmente dos começos da era cristã ou dos séculos seguintes e são muito úteis para compreender o pensamento religioso do judaísmo no tempo de Jesus e dos apóstolos. Algumas, como o Apocalipse de Henoc ou os Salmos de Salomão, são notáveis. Os apócrifos do Novo Testamento são em geral muito posteriores, não têm qualquer valor histórico e são muitas vezes de proveniência heterodoxa.

Não basta, pois, que um livro pertença à literatura judaica ou à primitiva literatura cristã, para ser incluído na compilação bíblica; é necessária ainda a consciência do seu valor religioso. E assim abordamos os problemas do Cânon e da inspiração que vão ser estudados mais adiante.

(continua...)

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