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quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A Bíblia: o livro e os livros (final)

Por Celestin Charlier







ESCRITAS E MANUSCRITOS



Em que estado chegaram até nós os textos da Bíblia? Para melhor compreendermos este assunto, recordemos as condições em que se encontrava a “edição” antes da descoberta da imprensa.



Era, na verdade, das mais precárias. Todo o livro tinha de ser copiado a mão. Podemos imaginar quantas probabilidades de erro tal método comporta se experimentarmos ditar a dez pessoas um mesmo texto, curto e fácil. Receberemos dez cópias diferentes. Ora, para tão longas obras, muitas vezes retranscritas, tiravam-se cópias das cópias e os erros iam-se amontoando. Foi assim que muitas passagens de autores antigos chegaram até nós irreconhecíveis. A esta fonte de erros, há que acrescentar ainda, os provenientes do material rudimentar da escrita, do desenho das letras, da qualidade do pergaminho, etc. Mal um livro era lançado, apareciam logo as variantes.

Analisemos, antes de mais, os tipos de escrita, Todos sabem que o alfabeto é de invenção relativamente recente. O homem começou por desenhar esquematicamente as ideias que queria exprimir. Por isso, de início, tinha tantos sinais quantas as ideias primárias. É a escrita ideográfica. Os hieróglifos egípcios são uma evolução deste sistema complicado, que tinha de ser exclusivo de uma casta de sábios escribas.

Foi, por isso, um enorme progresso, quando se descobriu a escrita silábica com um sinal por sílaba. A escrita cuneiforme assírio-babilônica é deste tipo. Mesmo assim, o número e a forma dos sinais constituíam um obstáculo grave. Coisa curiosa: o progresso veio precisamente destes semitas palestínicos que tantos consideram incapazes de abstrair. De fato, parece que foram eles os primeiros a conseguir isolar dentro da silaba o elemento consonântico da sua coloração vocálica. Assim inventaram a letra. Talvez tivesse contribuído para isso, o predomínio que nas suas línguas têm os valores consonânticos; na realidade, os primeiros alfabetos só têm consoantes.

Seja como for, o alfabeto hebraico mais antigo tem um certo parentesco com o alfabeto fenício que originou os alfabetos grego e latino, o que não é de admirar, porque os fenícios estavam intimamente ligados aos cananeus.

Até há pouco, localizava-se a descoberta do alfabeto pelos séculos XII e XI, e apresentava-se este fato como argumento para negar a anterioridade de todos os escritos bíblicos. Depois, descobriram-se junto do Sinai, em Byblos e, muito recentemente, em Rassamra (e portanto na mesma região do Corredor) três alfabetos que datam dos meados do segundo milênio – muito antes de Moisés.

Conhecemos a forma característica, quadrada e maciça, das atuais letras do alfabeto hebraico. Mas esta forma é relativamente recente. É o resultado da fixação dos caracteres antigos, que foi realizada apenas nos primeiros séculos da nossa era; Nesta mesma época, juntaram-se-lhe sinais ou pontos, para marcar as vogais, porque nas línguas semíticas, primitivamente, só se escreviam as consoantes.

Para nós, a escrita grega é mais familiar e tem variado muito pouco. No entanto, é preciso notar que os antigos escribas não faziam nenhuma distinção entre as palavras nem nenhuma espécie de pontuação. Enfim, havia vários tipos de escrita: o tipo cursivo com letras ligadas, muito difícil de ler; o caligráfico, mais cuidado, e usado nas oficinas de profissionais.

Os livros mais importantes eram escritos em papiro ou em pergaminho. O papiro é uma espécie de papel feito de fibras justapostas e sobrepostas com o auxílio de um aglutinante, Fabricava-se no Egito de uma planta muito vulgar no vale do Nilo. Para as obras de luxo e/ou mais volumosas empregava-se o pergaminho, cujo uso se generalizou cada vez mais a partir do século IV, a ponto de se tornar quase único na Idade Média, antes do triunfo definitivo do papel. Primitivamente uniam-se as folhas ponta a ponta formando um rolo. Mas a partir do século II, adquiriu-se o hábito de as coser em forma de cadernos de quatro folhas ou quaternins, que depois se reuniam num só volume. Parece que foram os cristãos que mais contribuíram para espalhar esta forma prática da qual saiu o livro moderno.

Não devemos pensar que a confecção destes livros era confiada unicamente à, iniciativa privada. Ao lado desta, a antiguidade conheceu a “livraria”, verdadeira empresa industrial. O editor era, geralmente, o chefe dum “scriptorium” que tinha por sua conta profissionais mais ou menos numerosos. Mandava ditar a mesma obra simultaneamente a todos os escribas. Depois, procedia-se às revisões para eliminar os erros segundo processos relativamente aperfeiçoados. Quando se tratava da reedição de obras muito difundidas e que saiam muito alteradas, procedia-se antes a um verdadeiro trabalho de crítica, tendente a restaurar o texto na sua pureza primitiva. Dá-se o nome de “recensões” a essas edições eruditas. Na Idade Média estes trabalhos de cópia e de revisão eram feitos quase exclusivamente nos mosteiros ou nas escolas claustrais.

Escusado será dizer que nestas condições, os livros eram muito caros. Por isso, ao lado destas edições de alto preço, multiplicavam-se as cópias privadas e as edições populares. Como havia necessidade de atender ao preço, essas obras eram muito menos cuidadas. Mas foi este o único meio de pulgação que as obras cristãs conheceram durante os dois ou três primeiros séculos, porque as Igrejas, perseguidas ou muito pobres, não podiam pagar o luxo das cópias caligráficas em pergaminho, e por isso existem exemplares deste tipo anteriores ao século V. Mas, a partir desta época, os textos sagrados conheceram transcrições luxuosas, em pergaminho purpurado, por exemplo, com letras de ouro ou de prata.


TEXTOS ORIGINAIS E VERSÕES

Pensa-se, e é verdade, que os textos autógrafos das obras bíblicas estão irremediavelmente perdidos. Portanto, temos de reconstituir o seu teor primitivo através das cópias que deles chegaram até nós. Estes documentos são de duas espécies: diretos ou indiretos. Os testemunhos indiretos são representados pelas traduções do texto original ou pelas citações dos escritores antigos.

Existem ainda milhares de manuscritos bíblicos, de interesse muito desigual, Do Antigo Testamento, os manuscritos hebraicos mais antigos datam do século IX e são duma uniformidade desesperante. Descobriu-se há pouco tempo, é certo, numa caverna das margens do Mar Morto, grande número de cópias parciais de Isaías e doutros escritores bastante anteriores à era cristã. O texto de Isaías parece estar já mais ou menos de acordo com o dos manuscritos que já conhecíamos, o que prova a antiguidade e o valor destes textos.

Mas o problema que as pergências entre o texto e a versão grega dos Setenta levantam, não foi solucionado nem esclarecido com esta descoberta. Quando muito, leva-nos a fixar em data anterior as medidas que provocaram a homogeneidade dos atuais manuscritos.

Desde a alta Idade Média, as escolas rabínicas vinham-se aplicando com o maior cuidado em dar ao texto o máximo de fixidez. Como resultado deste esforço deu-se aquilo que se chama a Massore, de os Massoretas – os seus autores. Fez-se então todo o possível por fazer desaparecer os manuscritos anteriores a esta reforma, pelo que podemos inferir do texto dos Hexaples de Oxigenes e do que São Jerônimo utilizou para a sua versão latina que não diferiam sensivelmente dos documentos atuais – deve ter começado muito cedo. No século IX, o resultado da Massore atingiu-se tão plenamente que com exceção de um ou outro fragmento nada mais nos resta de qualquer texto mais antigo.

No que se refere, porém, aos textos originais do Novo Testamento, a situação é muito persa. Dispomos de um grande número de cópias de todas as épocas, semeadas de variantes, por vezes bastante consideráveis.

Os manuscritos gregos podem agrupar-se em três categorias: os minúsculos, os unciais e os papiros. Os minúsculos são posteriores ao século IX. A maior parte reproduz um texto uniformizado conhecido por texto recebido. No entanto, alguns dos mais recentes são muito interessantes e é mesmo provável que o seu estudo profundo trouxesse ainda alguns resultados.

Tem-se, porém, prestado mais atenção – muito mais atenção aos grandes manuscritos unciais, escritos numa bela caligrafia maiúscula entre os séculos IV e IX. Vários, dentre eles, são célebres: o Vaticanus, do século IV; o Sinaiticus, também do século IV, que, descoberto no Sinai numa barca com papéis pelo sábio Tischendorf, e depois levado para São Petersburgo, passou recentemente ao British Museum de Londres, vendido pelos soviéticos. O Codex Bezae, do século V, greco-latino, que, roubado em Lyon zelos huguenotes em 1562 foi doado por Teodoro de Béze, em 1581, à Universidade de Cambridge, onde se encontra ainda. São quase todos manuscritos de luxo e grafados com o maior cuidado. O texto destes códices é na maior parte das vezes à prova de uma “recensão” atenta.

Já o mesmo não sucede com as confias muito veneráveis, descobertas no Egito há alguns anos: os papyri. Graças ao clima seco do vale do Nilo, o papiro, de natureza pouco consistente, pode conservar-se admiravelmente durante dezenas de séculos. Ignora-se, porém, a origem destes preciosos fragmentos que os sábios ocidentais compram a preço de ouro nas lojas do Cairo.

Uma das mais notáveis aquisições deste gênero foram os papyri Chester Beatty, aos quais devemos acrescentar ainda uma recente aquisição da Universidade de Michigan. Estas duas compilações deram-nos três manuscritos do século III, um dos quais nos dá o texto quase completo de São Paulo.

Antes desta data tínhamos apenas fragmentos reduzidos. O mais antigo parece ser o folheto do Evangelho segundo São João, encontrado em 1935, que os especialistas datam da segunda metade do século II. Foi o suficiente para desmoronar as sábias construções de Loisy(), que fazia remontar ao meio do século II a data da composição do Evangelho de São João. Foi escrito menos de cinquenta anos após o original.

() Alfred Loisy (1857-1940) foi um padre católico defensor e expoente da heresia do Modernismo, uma tentativa de aplicar métodos seculares e racionalistas à interpretação da Bíblia. Depois de muitas tentativas de reconciliar-se com ele, a Igreja o excumongou em 1908; a partir desse ano, Loisy abandonou à vida sacerdotal.

Mas tal proximidade dos autógrafos é, evidentemente, excepcional. Apesar do número e do valor dos manuscritos conservados, os mais antigos documentos bíblicos foram escritos, a maior parte das vezes, vários séculos depois dos escritores inspirados. Este espaço de tempo que, para o Novo Testamento, não excede dois séculos, e para o Antigo varia entre dez e dezoito séculos. Felizmente temos um meio de controle indireto. As obras foram traduzidas há muito tempo, e as traduções efetuadas sobre os manuscritos desaparecidos e muito próximos da data dos originais, permitem-nos reconstituir o estado dos textos antes das cópias diretas que ainda existem.

A tradução mais importante do Antigo Testamento é a versão grega, chamada versão dos Setenta, feita no Egito, nos séculos III e II antes de Cristo. É um testemunho do maior valor, não só porque os seus persos autores foram muito cuidadosos, mas ainda, e, sobretudo, pela sua antiguidade, que nos situa dez ou doze séculos mais próximos dos originais, que os manuscritos hebraicos. Foi utilizada por persas vezes no Novo Testamento e foi adotada pelas primeiras comunidades cristãs. Foi tal o seu prestígio na antiguidade cristã, que muitos, como Santo Agostinho a consideram tão inspirada como os originais hebraicos. No entanto, houve outras versões gregas, entre elas as de Teodócio e de Áquila, de que apenas nos chegaram alguns fragmentos nos Hexaples de Orígenes.

Além das versões gregas do Antigo Testamento, a antiguidade cristã viu aparecer traduções de toda a Bíblia nas principais línguas de então. Com exceção de uma, nenhuma destas versões do Antigo Testamento foi feita sobre o texto hebraico: têm todas por base a versão grega dos Setenta. Portanto, não são mais que subversões e, o seu valor, embora grande por vezes, está apenas em facilitar a reconstituição do texto desta versão. Mas, quanto às do Novo Testamento, algumas delas, sobretudo as versões latinas e siríacas, ocupam um lugar excepcional, porque foram feitas mais de dois séculos antes dos mais antigos manuscritos gregos, e menos de cem anos depois dos originais, nos meados do século II. Pelo menos, isto é o que sucede com as mais antigas, porque há também várias versões siríacas do Novo Testamento, de data posterior. A mais difundida de todas, a chamadapeschito, data do século V.

Referir-nos-emos em especial às versões latinas, não só pela importância, pelo número e pela antiguidade dos seus manuscritos, mas também porque precisamos conhecer a origem dos textos com que a liturgia nos familiarizou. Mas antes de mais, importa distinguir as antigas versões pré-hieronimitas e a obra de São Jerônimo, chamada Vulgata, pela sua difusão.

As antigas versões anteriores à de São Jerônimo, de que adiante falaremos, são, sob o ponto de vista crítico, as mais importantes, em virtude da sua antiguidade. Devem ter tido uma difusão enorme, porque os documentos que delas conservamos são dos mais pergentes, a ponto de não se poder dizer se provêm de uma ou de várias versões primitivas. Mas hoje em dia são raros estes documentos: a Vulgata suplantou rapidamente em toda a parte os velhos textos. Dos Evangelhos, por exemplo, os mais favorecidos contam apenas uma quinzena de manuscritos. É certo que, na sua maior parte, são duma antiguidade venerável: vários, como o que pertenceu a Eusébio, bispo de Vercelli, na Itália (371) e o Patatinus de Trento, são do século IV, e, por conseguinte, tão antigos como os mais velhos manuscritos gregos. Muitas vezes os manuscritos latinos foram copiados com um cuidado e um luxo que atestam a veneração religiosa votada à Palavra de Deus nessa época gloriosa. A sua redação ainda se mantém viva em certas partes da liturgia católica, e foi base de numerosas subversões em árabe, gótico, holandês antigo, provençal, etc.

Mas a falta de exatidão destas velhas versões aparecidas em meados do século II, talvez na África e nos meios cristãos populares, a extrema persidade e o estado de corrupção dos exemplares que existiam, tornavam urgente, no século IV, uma revisão, profunda sobre os originais. Foi esta a tarefa de São Jerônimo, sábio monge e homem de letras. Nascido entre 347 e 349, Jerônimo passou a sua vida em Roma e no Oriente e por fim em Belém, onde morreu em 420.

Temperamento ardente, espírito vivo e positivo, muito apaixonado pela literatura, apesar do seu ascetismo rude, conhecia admiravelmente o grego e aprendeu o hebraico. A conselho do seu amigo, o Papa Dámaso  mas a título privado, tornou a peito um gigantesco trabalho bíblico que marcou profundamente a Idade Média latina e, portanto, a nossa civilização ocidental.

Pensou primeiramente fazer um trabalho de revisão, cotejando as antigas versões latinas pela tradução grega dos Setenta. E deste modo fez duas revisões do Saltério.

A sua primeira versão não é, como habitualmente se pensa, a do Saltério chamado romano, que é uma antiga versão latina. A segunda, apesar das suas imperfeições, teve um êxito enorme e é a que a igreja latina ainda utiliza; por causa da sua difusão chamaram-na de galicana.

Quanto aos Evangelhos, São Jerônimo utilizou o mesmo método, revendo com base no grego, um velho texto latino. Parece todavia que não teve ocasião de prosseguir este trabalho para todo o Novo Testamento. Em 382, empreende uma obra muito mais séria e grandiosa, que, só por si, justifica toda a sua glória. Já não se tratava duma correção dos velhos textos, mas duma nova tradução em latim de todos os livros protocanônicos do Antigo Testamento sobre o texto hebreu original.

A nossa Vulgata latina conservou-nos assim a tradução do Antigo Testamento hebreu e a revisão dos Evangelhos do impetuoso Doutor. Os livros deuterocanônicos foram incluídos por ele, em harmonia com versões latinas anteriores. Quanto ao texto dos Atos, de São Paulo, das Epístolas católicas e do Apocalipse, é muito provável que não seja obra sua. Só aparecem na Vulgata a partir de Cassidoro (por alturas de 583).

É claro que São Jerônimo não foi o único a dedicar-se a trabalhos deste gênero. Há vestígios de numerosas tentativas de revisão em todos os textos antigos que possuímos. Uma das últimas e mais importantes descobertas, neste domínio, revelou, por exemplo, a atividade crítica intensa e notável de um gênio que é conhecido apenas sob o seu aspecto “especulativo”: Santo Agostinho. Fez uma revisão de quase todos os livros da Bíblia latina, uma revisão que é muitas vezes melhor que a Vulgata em São Paulo, por exemplo. E se ele se não impôs, foi em parte pela modéstia do seu autor que renunciou à sua própria obra em favor da Vulgata;: e sobretudo por causa da superioridade incontestável que o recurso direto ao hebraico, para o Antigo Testamento, proporcionou a São Jerônimo.

A todos estes documentos há que juntar ainda as inúmeras citações da Bíblia, feitas desde o século II pelos escritores cristãos. Por vezes, longas e precisas, são infinitamente preciosas, porque nos ajudam a pôr um pouco de ordem em todas estas matérias e a transformá-las em história. Permitem, mesmo, fixar o lugar de difusão e a data aproximada dos diferentes tipos de texto.


CRÍTICA TEXTUAL

Já é tempo de explicar em poucas palavras ao leitor como são utilizados todos estes documentos para reconstituir o texto original, e de o assegurar do valor prático dos nossos conhecimentos neste domínio. Encontramo-nos em face dum número quase infinito de variantes: não se contaram já de 200 a 300.000, só para o Novo Testamento? Não há quase nenhum versículo que tenha sido uniformemente apresentado.

Ora, algumas destas variantes são, pelo menos, consideráveis. Assim, por exemplo, o livro de Jeremias, em grego, tem menos um sexto que o texto hebraico, e em alguns manuscritos dos Atos aparecem variantes bastante diferentes, e até com um maior número de frases, que trazem novos e interessantíssimos pormenores a quase todas as linhas.

Como proceder a uma escolha judiciosa no meio de todas estas variantes? Como, por outras palavras, reconhecer o texto original do autor inspirado? Como distingui-lo das sucessivas corruptelas que copistas negligentes ou revisões ineptas lhe fizeram sofrer no decurso do tempo? Para fazer esta distinção, a crítica dispõe de dois critérios diferentes, embora necessariamente simultâneos e interdependentes: a crítica externa e a crítica interna.

A crítica externa estuda o valor dos testemunhos – manuscritos ou não – em relação a cada uma das variantes. E, antes de mais, tem de renunciar a muitos preconceitos firmemente espalhados, como por exemplo, o julgar-se que a melhor versão se encontra nos manuscritos mais numerosos, ou nos mais antigos, ou mesmo nos que conservam a língua original. Ora, nada mais falso do que isto. A antiguidade dum manuscrito não prova nada; um manuscrito do século V pode ter sido copiado de outro da mesma época enquanto que um manuscrito do século IX, por exemplo, pode ter sido copiado dum manuscrito do século IV. Neste caso, o texto do manuscrito mais recente está mais próximo da data do texto original que o do manuscrito antigo. O mesmo sucede quanto ao número: cem cópias dum mesmo manuscrito representam um só testemunho; três cópias de manuscritos independentes representam três testemunhos. Quanto à língua, há que ter toda a circunspecção. Uma versão hebraico, constante dum manuscrito do século IX depois de Cristo, pode ser seriamente abalada por uma pergência na versão dos Setenta, treze séculos mais próxima dos originais.

O que importa, antes de mais, na crítica textual externa, é reconstituir tanto quanto possível a história dos diferentes estados do texto, agrupando os documentos semelhantes e procurando saber porque se teriam tornado diferentes. Este trabalho ainda está pouco desenvolvido, porque ainda não foi possível juntar todos os documentos materiais em estado satisfatório. Assim, muitas citações dos Santos Padres, só as conhecemos nas velhas edições, feitas sobre manuscritos pejados de erros.

Quanto ao Antigo Testamento, seria preciso conhecer melhor a história da versão dos Setenta e melhorar o seu texto atual, Quanto ao Novo, o trabalho está um pouco mais avançado, e já se conseguem distinguir três ou quatro fases na história do seu texto.

A primeira vai desde as origens ao século III. Os textos são copiados sem grandes cuidados, mas também sem revisão sistemática. Estes textos populares são os mais corrompidos, apesar da sua antiguidade. Não obstante, tem um grande valor, porque neles o bom grão encontra-se misturado com o joio. Por isso, há, atualmente a tendência para reconhecer uma importância cada vez maior aos papiros e às antigas versões siríacas ou latinas, que nos transmitiram os vestígios deles. Este texto foi denominado, muito impropriamente, de ocidental.

A segunda, compreendida entre o século III e o IX, é a era das recensões eruditas, chamadas de texto oriental. Purificam-se os textos das suas escórias populares, mas ao mesmo tempo eliminam-se excelentes versões. É costume distinguir neste grupo três recensões: a alexandrina feita no Egito, no fim do século III, que possui os melhores manuscritos unciais; a cesariana, feita na Palestina, e a luciânica em Antioquia. A partir do século IX, esta última – a menos fiel, mas a mais elegante – refere-se quase exclusivamente aos textos bizantinos e domina o terceiro período: o do texto aceite. Finalmente, o século XIX, dá origem, ao quarto período – o das investigações cientificas.

No entanto, a crítica externa é impotente para nos dar indicações definitivas sobre as várias versões, e, de resto, para classificar os manuscritos há que recorrer àcrítica interna. Esta procura precisar o valor dos textos através do seu conteúdo.

É aqui que estão os equívocos evidentes, que é preciso corrigir mesmo indo contra todos os testemunhos: assim evertit domum (“destrói a sua casa”) em todos os manuscritos da Vulgata, por everrit (varre) em Lucas (15, 8); noutros casos, porém, as variantes que se encontram são todas igualmente verossímeis. Por isso, no Prólogo de São João (1, 13), a lição no singular “em nome daquele que nasceu” oferece um sentido tão aceitável como se estivesse no plural. Ora, nestes casos, é à crítica externa que compete decidir e parece tê-lo feito, no exemplo citado, em favor da primeira versão, apesar de rara. Mas, há muitos outros casos, inicialmente ambíguos, que só um exame interno mais profundo pode resolver.

Com esta intenção, os críticos enunciaram variadíssimas leis que, grosso modo, podemos reduzir a duas. A primeira é a do contexto: é verdadeiro o sentido que se integra com mais naturalidade no pensamento do escritor em geral, e, especialmente no da passagem em que aparece a pergência. Assim, a atribuição do “Magnificat” a Isabel não condiz com o desenvolvimento do pensamento de São Lucas e, deve, por isso, ser rejeitada, apesar do valor dos documentos e das ligeiras incoerências nos detalhes do texto atribuído a Maria. A segunda lei é mais decisiva ainda: é verdadeiro o sentido que explica a origem das outras pergências sem, no entanto, poder ser explicado por estas. Por isso, o texto de Marcos (1, 41) “Jesus, irritado contra ele” não pode derivar da versão “Jesus compadecido dele”. Nenhum cristão teria imaginado um sentido tão pouco conforme às tradicionais atitudes da piedade cristã. A outra afirmação, pelo contrário, explica-se muito bem como uma correção de copista impressionado, correção que devia parecer mais legítima tanto mais que já Mateus e Lucas, em narrativas paralelas, tinham escrito “compadecido dele”...

Estes breves exemplos têm pelo menos o mérito de revelar ao leitor as incertezas desta ciência feita de imponderáveis que é a crítica textual. Muitas vezes, as suas conclusões não passam de probabilidades; são o resultado do fato de se ter recorrido a argumentos todos eles insuficientes.Torna-se necessário utilizar, simultaneamente, tanto a crítica externa como a interna em todas as fases do exame.

Contudo não devemos terminar com uma nota exagerada de ceticismo. Os exemplos citados podem mostrar o interesse real e até mesmo a importância deste trabalho crítico, mas o cristão não ignora que, de qualquer modo, os alicerces da sua fé não estão ameaçados. A grande maioria das pergências não tem importância doutrinal. No conjunto, possuímos um texto concordante, na sua essência, não só com o pensamento, mas também com as expressões originais dos escritores sagrados. Seria passar ao extremo oposto, em vez de observar a inutilidade prática destas investigações criticas. O interesse destas está em colocar tudo no devido lugar. Não devemos recear que a essência do dogma cristão seja posta em causa por uma pergência dos manuscritos, seja ela qual for. Devemos esperar antes um esclarecimento precioso dos matizes do pensamento dos autores inspirados, graças a um conhecimento mais perfeito daquilo que, na realidade, escreveram. Como toda a ciência bíblica, a crítica textual não compromete os fundamentos da fé, antes os solidifica.

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