É muito comum, hoje em dia, pessoas devotas, fiéis usaram no peito uma cruz pendurada. Não é raro também encontrarmos a imagem do Cristo Crucificado em locais públicos, em casa de fiéis católicos, até em camisas. Para nós, católicos a cruz tem um sentido honrado, pois é símbolo de nossa redenção. Porém no tempo de Jesus não era assim. Mas como era? É o que vamos estudar aqui.
Devemos iniciar por breves considerações históricas acerca dessa maneira de executar a pena de morte. Na antiguidade, a crucificação não era algo extraordinário, muito ao contrário, era uma forma de execução muito comum. Um dos eventos históricos mais conhecidos é a revolta de gladiadores, por volta do ano 70 a.C, liderados por Espartacus. Eles resistiram muito tempo mais no final foram presos e o resultado foi cerca de seis mil crucificados. Como já indicamos, a crucificação não era exclusividade do império romano romana. Segundo Marinelli (1996, p. 37), “A crucifixão era muito difundida nas civilizações antigas. O primeiro documento que remete a ela se encontra na literatura suméria. Em Roma esse suplício apareceu em torno do ano 200 a.C. e se distinguia pela atrocidade e pelo vilipêndio que o acompanhavam; os romanos puniam com essa execução o banditismo e a revolta de escravos”. Mas a forma da crucifixão (ou crucificação) diferia de região para região. Certo é que morrer crucificado era algo pavorosamente horrível. De modo algum a cruz lembrava honra!
No tempo de Jesus a cruz sinalizava indignidade e, por isso, o condenado era a imagem da repulsa e do nojo. O condenado a crucifixão era visto como marginalizado pela humanidade, ou como diz Reinold Blank (2001, p. 85):“Quem era crucificado se tornava um ‘não-pessoa’ aos olhos de seus contemporâneos, sobre a qual era impossível falar. Um crucificado tinha que ser extraído da memória do povo e esquecido por todos. Era este o veredicto que pairava na cruz”. Ser condenado à crucifixão significava ser condenado ao esquecimento histórico, sua memória, sua vida deveriam ser exterminados junto com ele. O Antigo Testamento indicava que quem fosse crucificado (ou mesmo enforcado), era visto como desgraçado, como amaldiçoado pelo próprio Deus (Dt 21,23). Lembremos que segundo a mentalidade do homem do A.T. os inimigos de Israel eram inimigos de Deus, então eram amaldiçoados, por exemplo: “Josué mandou matar os cinco reis colocando-os em cinco árvores, onde ficaram pendurados até a tarde” (Js 10, 26). São Paulo ao falar do sacrifício de Jesus faz referência a Dt 21,23. Diz o apóstolo: Cristo nos resgatou da maldição da Lei tornando-se ele próprio um maldito em nosso favor, pois está escrito: ‘Maldito todo aquele que for suspenso no madeiro”(Gl 3,13).
Talvez possamos, a partir daí entender o empenho por parte de alguns doutores da Lei em condenar Jesus à crucifixão, ou seja, uma vez condenado e morto na cruz estaria comprovado que ele era uma farsa, ele não poderia de forma alguma ser o messias, ao mesmo tempo a lembrança desde nazareno seria apagada da história.
Marinelli (200, p.p.37,38) nos indica o “caminho” do condenado à crucifixão: “Reconhecida a culpa e pronunciada a sentença ‘seja crucificado!’, o juiz ditava a sentença e indicava as modalidades de execução, a ser efetuados pelos carrascos ou, nas províncias, pelos soldados.
Diante do magistrado, o condenado era, primeiramente, submetido à flagelação, confiada aos tutores (‘torturadores’), que agiam em dupla. Desnudado e atado a um poste ou a uma coluna, era golpeado com instrumentos diversos, segundo sua condição social. Para os escravos e os habitantes das províncias era usado o flagrum ou flagellum (‘açoite’), formado por duas ou três tiras de couro ou corda (lora), entremeadas de lascas de madeira ou de ossículos de ovelha, que provocavam sérias lacerações e abundante derramamento de sangue”. Ainda antes da crucifixão temos efetivamente um processo de desfiguração, de estraçalhamento ao qual o condenado era submetido. Jesus passou por tudo isso com um agravante: seu suplício certamente teve início em meio ao seu próprio povo, em meio a Israel. Ele passou por suplícios horríveis ainda antes de ser entregue à condenação romana. Até chegar à cruz ele já estava desfigurado. O profeta Isaias, centenas de anos, antes já anunciava tamanho horror: “De tal forma ele já nem parecia gente, tanto havia perdido a aparência humana que muitos se horrorizaram com ele” (Is 52, 14).
O local da crucifixão ficava fora da cidade. Estar fora da cidade era como estar fora da humanidade, era ser considerado um não-humano. A cidade é o local de gente, – diríamos em linguagem moderna – civilizada, logo ficar excluído da cidade era estar fora da civilização, em outras palavras ser crucificado representava perder a sua condição humana.
Segundo Marinelli a lei romana não permitia que o crucificado ficasse completamente nu. No entanto, precisamos lembrar que a lei vale para o homem, e o condenado não era mais considerado como humano, logo ainda que a lei ditasse algo que resguardasse minimamente a dignidade do supliciado, em termos práticos o que valia era a humilhação extremada. O objetivo da crucifixão era proporcionar uma morte vagarosa, mas aterradora e dolorosa. Até a crucifixão, o condenado caminhava carregando nas costas o patibulum(pesando em torno de 50 quilos), que era a parte horizontal da cruz, a outra parte chamava-se stipes, era a trave vertical que ficava fixada no local das execuções (cf. MENEZES, p. 27). A cruz tinha, portanto, a forma de um T ( tau grego), além disso, o condenado levava amarrado no pescoço o motivo de sua condenação e até chegar ao local de sua execução, o condenado, era maltratado de todas as formas: cuspiam e batiam, ele era ferido com objetos pontiagudos e cortantes.
Em termos humanos, a cruz significava destruição total e completa, não havia maior kénosis (esvaziamento) do que a cruz. O lenho da cruz era denominadoxulon e não havia suplicio pior. A condenação ao xulon era reservada aos piores delinqüentes. Não era bem visto um cidadão romano falando o nome de um condenado ao xulon. Esse instrumento de morte era pensado para tornar o sofrimento o mais degradante possível. O padre Raniero Cantalamessa (2000, p.120) tece o seguinte comentário: “Crucificado!’ no tempo dos apóstolos, essa palavra não se podia ouvir sem que um calafrio de pavor varasse pelo corpo inteiro”. Para termos uma vaga noção do comentário de Raniero Cantalamessa acerca do temor causado pela cruz, vale considerarmos que oxulon não era um instrumento para realizar uma morte rápida, a intenção era proporcionar uma morte lenta objetivando a confissão do crucificado. Mas quando era preciso apressar a morte, os romanos podiam, com um golpe de lança, perfurar o coração do condenado, ou então quebrar as pernas para que a pessoa morresse asfixiada, visto que não teria mais condições de se elevar para respirar. Após a morte, o corpo nem sempre tinha uma sepultura digna, ou adequada “para que a humilhação continuasse; por isso, muitas vezes se jogavam os cadáveres no lixão da cidade ou os abandonavam nas cruzes como alimento de animais predadores” (Marinelli, 2000 p. 12).
A Igreja, ainda nos tempos apostólicos, viu que em Jesus realiza-se tudo o que era predito no A.T. incluindo a ignomínia, a infâmia da crucifixão, basta ler Sb 2, 13-24 e Is 52, 13-15 e o cap. 53.
No entanto é que Jesus não foi esquecido, a cruz converteu-se em algo honroso. Qual foi o motivo dessa reviravolta? O que fez com que os discípulos, após o inicial temor, ficarem dispostos a se sacrificarem, perdendo a própria vida? Deve ter acontecido algo com a capacidade de transformar o sentido da cruz tanto no aspecto social como no aspecto religioso. A resposta mais plausível é a mais fantástica: Ele Ressuscitou. Daí em diante a cruz (que, como mostramos tinha a forma de um tau=T), passou a ser um símbolo de salvação. Mas também essa transformação da cruz, já se fazia presente em sentido profético no A.T. (cf. Ez 9,3-8).
Essa transformação é fruto do sacrifício divino-humano do Verbo Encarnado. Muitos foram crucificados, mas a crucifixão de Cristo foi um sacrifício, ou seja, um oficio, uma ação sagrada, santa. O sacrifício (ação sagrada) revela-se como dom total (kénosis = esvaziamento) e por isso inteiramente num plano de amor (ágape), oblativo que renuncia sua condição divina para resgatar o humano e continua cada vez mais oblativo quando, em certo sentido, renuncia sua condição humana para assumir a condição de pão e vinho.
Professor Ricardino Lassadier
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