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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

TEMPO PARA RENOVAR A MÍSTICA PASCAL




Passados os dias do carnaval, marcados pela explosão frenética das alegrias efêmeras da vida, iniciamos o tempo da quaresma. Muda completamente o horizonte. A vida agora proposta e buscada é de outro quilate. Uma vida, conforme a Palavra de Deus, incomparavelmente superior, de alegria, paz, bondade, beleza, durabilidade, não obstante as naturais contradições e ambiguidades nela incrustadas. 

O objetivo da quaresma é fazer em nossa vida, sob a condução do Espírito, a experiência de Jesus, que foi, do início ao fim de sua vida, uma experiência pascal, isto é, uma experiência de êxodo, culminando com a passagem da morte para a ressurreição. É o que a Igreja chama de mistério pascal, o mistério do amor divino traduzido na carne humana de Jesus, a revelação do ser divino na condição humana. 

Para os que decidimos acolher a graça de viver a experiência de Jesus, esse mistério pascal implica também para nós um processo lento e progressivo de vida e morte, morte e vida. Um processo de transfiguração, à semelhança daquela de Jesus. Um caminho de transformação, aberto a toda a humanidade, visando à criação de uma nova ordem mundial, humana, justa e solidária.

O Evangelho da quarta-feira de cinzas nos apresenta sinteticamente o programa dessa espiritualidade pascal: oração, esmola, jejum. Três exercícios que apontam para os três pólos ineludíveis da vida cristã: Deus (oração), o outro (esmola) e eu (jejum). Vejamos como a experiência integrada desses três pólos transforma concretamente nossa existência.

A oração. É nossa inter-comunicação vital com Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Através dela entramos em comunhão com a vida trinitária, que se identifica com o amor, um amor mútuo perfeito. Em cada uma das três pessoas, esse amor é, ao mesmo tempo, dom e acolhimento. O dom ou entrega de si mesmo implica necessariamente a morte a si mesmo. Assim como o acolhimento significa a vida. O Pai se dá todo ao Filho, nada reserva para si, morre para si. O Filho acolhe o Pai e, por sua vez, se dá todo ao Pai, morrendo para si. O Pai acolhe o Filho em abraço de amor. O Espírito Santo é o próprio abraço desse amor do Pai e do Filho, igualmente acolhimento e dom, vida e morte. Assim em Deus a morte está no próprio seio da vida. Viver, em Deus, é morrer e morrer é viver.

Cada ser humano tem seu jeito único de se comunicar com Deus. É o próprio Espírito Santo que, em nossos corações, se expressa de mil maneiras, sempre originais. Acolhe e dá, louva e agradece, adora e suplica, chora e exulta. Essa oração de fé nos faz viver e morrer com o mesmo amor, recebido do alto. Oração que não é pura interioridade. Ela se estende e se expressa em gestos e atividades humanizantes, criadoras e curadoras de vida. 

O outro. Por vontade de Deus, é precisamente este outro, compreendidos nele todos os seres criados, o caminho pelo qual Deus se comunica conosco e nós nos comunicamos com ele, impedindo que nos refugiemos num intimismo estéril. Se reconhecemos que tudo o que somos e temos é graça, pura dádiva de Deus, essa graça nos advém através de toda a criação, particularmente através de pessoas, quaisquer que elas sejam. Igualmente as ofertas que queremos fazer a Deus, é a Deus vivo e presente em cada uma das pessoas humanas que as fazemos. Assim acontece, exemplificando, com o dízimo que damos à comunidade, com a oferta da Campanha da Fraternidade destinada para fins específicos. Pela fé sabemos que é a Deus que os oferecemos. A sabedoria popular já consagrou essa compreensão, quando diz: "Quem dá aos pobres empresta a Deus". Pela encarnação de Cristo, Deus está indissoluvelmente unido a todas as suas criaturas. É importante encontrá-lo ali e não imaginá-lo atrás ou acima das nuvens, num distante mundo do além. 

Eu. Somente quando, pela mediação dos outros, eu tiver descoberto a presença de Deus, vivo e atuante em mim, manifesto ou escondido em meu coração, serei capaz de enxergá-lo vivo em todos os irmãos e na criação inteira. Poderei ser então, ao mesmo tempo, um contemplativo, um místico, e um agente pastoral engajado em alguma das mais diversas tarefas de transformação do mundo. Quando estiver totalmente aberto, receptivo ao amor de Deus, cercando-me de todos os cuidados, e souber entregar-me generosamente ao serviço dos outros, serei verdadeiramente humano, uma pessoa livre e libertadora, pela graça de Deus. O jejum praticado será assim o exercício da minha liberdade, pois saberei renunciar a mim com todas as minhas coisas para doar-me por completo aos outros.

Assim estarei fazendo a experiência de Jesus, sua experiência pascal da vida. 

Bispo Dom José Clemente Weber

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