Giotto, o Matrimônio da Virgem Maria com São José, séc XIV
Ao relatar o nascimento de Jesus, São Mateus conta que José esteve prestes a divorciar-se de sua esposa Maria, quando se apercebeu de que ela estava grávida e de que o filho por ela esperado não era seu.
Uma dúvida cruel
O texto diz: «18Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava desposada com José; antes de coabitarem, notou-se que tinha concebido pelo poder do Espírito Santo.19José, seu esposo, que era um homem justo e não queria difamá-la, resolveu deixá-la secretamente.
20Andando ele a pensar nisto, eis que o anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: “José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concedeu é obra do Espírito Santo. 21Ela dará à luz um filho, ao qual darás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados.” 22Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta: 22Eis que a virgem conceberá e dará á luz um filho; e hão-de chamá-lo Emanuel, que quer dizer: Deus connosco. 24Despertando do sono, José fez como lhe ordenou o anjo do Senhor, e recebeu sua esposa» (Mt 1,18-24).
Os cristãos sempre se sentiram desconcertados pelo dramático momento que a Sagrada Família viveu, perguntando-se: José duvidou realmente da honestidade da sua esposa? Pensou que ela lhe tinha sido infiel com outro homem? Quanto tempo viveu torturado em silêncio, sem saber que o menino que ela levava nas entranhas vinha do Espírito Santo, até que um anjo lhe contou a verdade? E por que motivo Maria não lhe disse, se ninguém lho tinha proibido? Porque é que Deus só anunciou a ela a gravidez virginal, e não a José? Para o mortificar? E porque quis José abandoná-la em segredo?
Matrimónio em duas partes
Sem nos pormos a questionar a veracidade deste episódio (que, tal como está contado, pode ser histórico ou não), podemos tentar responder a estas perguntas suscitadas pelo relato de Mateus.
Para isso devemos ter em conta os costumes matrimoniais daquela época. Os judeus costumavam casar cedo: os rapazes aos 18 anos e as raparigas aos 13. Os próprios rabinos afirmavam que “Deus maldiz o jovem que ainda não se casou aos 20 anos”. E por tratar-se de uma idade tão prematura, a eleição do par corria por conta dos pais.
Para justificar este costume, os israelitas diziam que era próprio Deus, no céu, quem concretizava as uniões matrimoniais quarenta dias antes do nascimento de cada criança e imediatamente o comunicava aos seus pais. Mas havia alguns casos em que os jovens elegiam as suas futuras noivas.
Concretizada a eleição, realizava-se a primeira fase do casamento, chamada pelos rabinos “quidushín” (consagração). Era uma espécie de compromisso formal, em que a jovem ficava consagrada para sempre ao seu noivo, mas ainda não podiam viver juntos devido à pouca idade da jovem, e ao facto de os esposos quase não se conhecerem.
O período do “quidushín” durava geralmente um ano, e os jovens já eram considerados verdadeiros esposos, de tal modo que, se ela se unisse a outro homem durante esse tempo, tornava-se adúltera; e se morresse, o rapaz era considerado viúvo.
Decorrido o ano do “quidoshín”, realizava-se a segunda parte do casamento, chamada “nissuín”, na qual, após uma grande festa de vários dias, a jovem era conduzida em cortejo à casa do seu esposo para começarem a viver juntos.
A noite escura de José
Deve, pois, ter sido entre o “quidoshín” e o “nissuín”, isto é, entre a primeira e a segunda fase do casamento, que Maria ficou grávida do Espírito Santo. Assim o especifica Mateus: «Maria estava desposada com José. Antes de coabitarem, notou-se que tinha concebido pelo poder do Espírito Santo.» (Mt 1,18-19).
Que sucedeu, então, entre os santos esposos? Não sabemos. Mateus não o diz. Só podemos imaginar o drama que José viveu, atormentado pelas suspeitas de infidelidade da sua esposa, angústia que Deus não teve a bondade de poupar. E a dor de Maria, que via o seu esposo sofrer, mas calava porque tinha medo de não ser compreendida.
Este período da vida de José é Maria impressionou tanto o espírito e a imaginação dos cristãos, que alguns procuraram ampliar aqueles momentos dramáticos com novos relatos.
O diálogo angustioso
Um desses relatos encontra-se no Evangelho apócrifo intitulado O Proto-Evangelho de S. Tiago, composto por volta do ano 150. Nele conta-se como Maria, encontrando-se de visita a casa da sua parenta Isabel, notara que o seu ventre ia crescendo cada dia. Aflita, empreendeu o caminho de regresso à sua cidade e escondeu-se. Passados uns sete meses da sua gravidez, José voltou de uma longa viagem de trabalho e encontrou Maria grávida.
Chorando amargamente, repreendeu-a: “Porque fizeste isto? Porque manchaste assim a tua alma, tu que foste criada no Templo de Deus, e recebeste o teu alimento das mãos de um anjo?” Mas ela, chorando, respondeu-lhe: “Eu sou pura. Não tive relações com nenhum homem.”
José disse-lhe: “De onde saiu, então, o que está no teu ventre?” E ela respondeu: “Juro-te pela vida do Senhor, meu Deus, que não sei de onde veio.”
Mas as coisas complicaram-se ainda mais para o pobre José, porque no dia seguinte um amigo seu, informado acerca do estado de Maria, denunciou-o perante o Sumo-Sacerdote dizendo: “José violou a virgem que devia guardar, e consumou o matrimónio em segredo.”
As águas amargas
Segundo este apócrifo, o Sumo-Sacerdote ordenou que os dois esposos fossem conduzidos ao Templo, e ali, com palavras duras, acusou-os de terem faltado à sua palavra. Mas, como eles chorassem e jurassem por Deus que eram inocentes, resolveu submeter Maria à prova das “águas amargas”.
Que eram as águas amargas? O livro dos Números (5,11-31) mandava que, se algum marido suspeitava da fidelidade da sua esposa e não havia forma de averiguar a verdade, devia levar a mulher ao Templo para submetê-la a uma prova. Ali, na presença de testemunhas, era-lhe soltada a cabeleira (que toda a mulher decente em Israel trazia recolhida para que ninguém a visse), como forma de envergonhá-la em público.
Depois, o Sumo-Sacerdote pegava num copo de água e misturava-a com terra apanhada do chão. Escrevia uma série de maldições e juramentos com tinta numa folha, diluía-a fazendo correr a água do copo sobre o papel, e recolhendo novamente o líquido dava-o a beber à mulher, dizendo:
“Se foste infiel ao teu marido, se tiveste relações com outro homem e te tornaste impura, que Deus te converta em exemplo de maldição perante o povo, e faça com que te caiam os músculos e te inche o ventre.”
Tratava-se, evidentemente, de uma legislação machista, que terminava sempre dando razão ao marido, pois com semelhante bebida qualquer mulher ficava intoxicada e com o ventre inchado.
Mas, contam os apócrifos, quando Maria bebeu do copo, um inesperado resplendor surgiu no seu rosto e a sua cara se transfigurou de tal modo que as testemunhas que presenciaram o julgamento não podiam olhá-la de frente. Desse modo, todos souberam que ela era inocente.
As razões do justo José
Este longo relato dos apócrifos mostra até que ponto se estimulou a imaginação dos primeiros cristãos face ao paradoxal episódio que punha José a duvidar injustamente da sua esposa virginal.
Mas aqui chegamos ao ponto mais escuro e misterioso de todo o relato. Porque decide José abandonar Maria, deixando-a só e exposta no pior momento da sua vida? Mateus diz: porque ele era “justo”. Mas, que tem que ver a sua justiça com o facto de abandonar a sua mulher?
Há duas teorias que se propõem explicar a justiça de José. Segundo a primeira, José acredita que Maria cometeu adultério. Ora, a Lei de Moisés ordenava que a mulher adúltera devia ser repudiada pelo seu marido (Dt 22,20-21). E, como ele era”justo”, isto é, cumpridor da Lei, decide repudiá-la (abandoná-la) para cumprir a Lei. Segundo esta teoria, “justo” significa cumpridor da Lei.
Mas, esta hipótese choca com um inconveniente. A Lei ordenava ao marido repudiar “publicamente” a mulher infiel. E José decide repudiá-la em segredo. Portanto não estaria a cumprir a Lei de Moisés. Como podemos, assim, chamar-lhe “justo”?
Na segunda teoria, José acredita que Maria cometeu adultério. Mas ele sabe que a Lei manda apedrejar as adúlteras até morrerem. Então, como é “justo”, isto é, bondoso, e não quer que ela sofra, abandona-a, sim, mas em segredo, para lhe salvar a vida. Portanto, segundo esta teoria “justo” significa bondoso.
Mas também esta hipótese apresenta dificuldades. Se José quer abandonar Maria em segredo porque é bom, não se deveria chamar “justo”, mas “bondoso”. Porque diz Mateus que ele é justo?
A terceira teoria
Nenhuma das duas teorias, pois, explica satisfatoriamente porque razão José quer abandonar Maria. Por isso, actualmente, os biblistas vêm propondo uma terceira que, além de harmonizar melhor com o contexto do relato, tem mérito de lançar uma nova luz sobre São José.
Segundo essa teoria, José estava a par do mistério de Maria. Desde o princípio soube que o menino que a sua esposa levava no ventre era filho do Espírito Santo. Por isso nunca pensou que ela o teria enganado. Isto deduz-se do modo como Mateus começa o seu relato. Com efeito, diz: «Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava desposada com José; antes de coabitarem, notou-se que tinha concebido pelo poder do Espírito Santo» (Mt 1,18).
Ou seja, começa por dar três informações: a) que Maria estava comprometida com José; b) que não viviam juntos; c) que ela ficou grávida do Espírito Santo. E nós normalmente supomos que José só conhecia dois desses dados: o primeiro e o segundo. Mas não o terceiro. E porque não este? Porquê, se Mateus enumera os três juntos, e em seguida apresenta José a analisar este dilema? Segundo Mateus, é lógico que José conhecia as três informações.
Como soube José da gravidez de sua mulher? Mateus não diz. Mas tão-pouco diz como se informou Maria (Lucas é quem conta que a anunciação foi de um anjo). Portanto, é possível pensar que, para Mateus, ambos souberam da mesma forma.
O aviso era outro
Resta um último problema. Porquê um anjo avisa José, em sonhos, de que o filho esperado por Maria é do Espírito Santo, se ele já o sabia? Na realidade, as palavras do anjo estão mal traduzidas nas Bíblias. De facto, costumavam dizer: «José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concedeu é do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, ao qual darás o nome de Jesus» (Mt 1,20). Mas, como afirmam muitos biblistas, as partículas gregas “gar” e “de” que aparecem nesta frase não devem ser traduzidas apenas com um “porque”, como está nas Bíblias, mas com um “porque, embora”. Desse modo, a mensagem do anjo muda totalmente, e diz assim: «José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa;porque, embora o que ela concedeu seja obra do Espírito Santo, ela dará à luz um filho, ao qual darás o nome de Jesus» (Mt 1,20).
Portanto, aquilo de que o anjo informa José não é sobre a origem divina do menino (coisa que ele já sabia), mas que ele ia ficar com Maria para dar o nome ao menino (coisa que não sabia).
Um plano para os dois
Agora sim, com esta nova perspectiva, tratemos de entender o relato de Mateus.
José e Maria, dois jovens israelitas de 18 e 13 anos respectivamente, estavam comprometidos. Tinham concretizado a primeira fase do matrimónio, o “quidushín”, e esperavam poder ir brevemente viver juntos uma vez decorrido o prazo estipulado. Mas, nesta fase de espera, Maria foi escolhida por Deus para ser mãe do seu divino Filho. Informado disso, José viu-se perante um sério problema: ele tinha escolhido Maria para si, para que ela fosse sua esposa, a mãe de seus filhos, sua companheira. Mas agora dá-se conta de que também Deus se tinha fixado nela, e a tinha escolhido para mãe de seu Filho.
Como competir com Deus pelo amor de uma jovem? Podia ter a Deus como adversário? Não. Nem podia apropriar-se de um filho que não era seu, mas que vinha do céu. Seria uma injustiça.
E, aqui, então, se esclarece a decisão de José. Como ele era justo, não querendo apoderar-se de um filho que pertencia a Deus, e vendo além disso que Deus tinha escolhido a mesma mulher que ele para iniciar o plano de salvação, resolve deixar a sua esposa livre do compromisso que tinha contraído, e divorciar-se em segredo.
E assim tinha decidido, quando em sonhos se lhe apresenta um anjo e lhe diz que não tenha medo (isto é, escrúpulos) em tomar a Maria como esposa (ou seja, celebrar o “nissuín”). Porque embora o filho que ela espera venha de Deus, ele lhe porá o nome de Jesus quando nascer.
Por outras palavras, Deus pede a José que fique junto de Maria. Porque, apesar dela ter sido eleita para Deus, ele também foi eleito – também faz parte do plano de salvação. E qual é a sua missão em tudo isto? Deverá pôr o nome ao menino, isto é, considerá-lo como seu, assumi-lo como próprio. Porque, sendo ele descendente da família do rei David, se o adoptasse como seu filho podia transformar Jesus num “descendente” de David, num “filho de David”. E, ao introduzir Jesus na genealogia de David, cumpria-se as profecias anunciadas sobre Ele.
Recuperar José
Sempre tivemos uma imagem triste e descolorida de S. José. Imaginamo-lo como um pobre homem (quando não um idoso), manso e sofredor, que mês após mês teve que ver crescer o ventre da sua amada, enquanto por dentro morria de dor em silêncio. Desorientado e quase ridículo, lutando entre a confiança e a dúvida, entre o amor e os ciúmes. Como era incapaz de compreender o mistério da encarnação, não lho diziam. Mas este não é o S. José do Evangelho. José nunca teve dúvidas acerca de Maria. Soube tudo desde o princípio, porque tinha a mesma maturidade que a sua esposa. A sua única dúvida era sobre se Deus o queria ou não ao lado da sua mulher. E Deus fez-lhe saber que sim.
Hoje os cristãos entronizámos muito Maria, mas não tanto a José. Na liturgia temos muitíssimas festas da Virgem Maria, mas só duas de S. José: 19 de Março e 1 de Maio. Os próprios estudo de Mariologia dão a impressão de que ela não teria sido casada, que se teria santificado fora do contexto matrimonial e familiar. Até as nossas devoções, imagens e pinturas se centram quase exclusivamente em Maria, prescindindo de José. Separámos o que Deus uniu!
Mas Maria e José amaram a Deus em conjunto. Santificaram-se juntos. Um com o outro. Estiveram juntos desde o princípio. Por isso hoje, quando tantas famílias atravessam momentos de crise, quando muitos casamentos metem água por todos os lados e a Igreja não dispõem de modelos conjugais, convém lembrar José, a quem Deus quis santificar em família, unido para sempre a Maria, sua mulher.
Ariel Álvarez Valdés
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