“Deus Pai juntou todas as águas e denominou-as mar; reuniu todas as graças e chamou-as Maria”(1), exclamou São Luís Maria Grignion de Montfort.
O grande e ardoroso apóstolo da Virgem Santíssima fazia eco, desta forma, à saudação angélica: “Ave Maria, cheia de graça ...” Reproduzia outrossim, em forma alegórica, as palavras do próprio Deus, comunicadas por São Gabriel –– o celeste mensageiro que, a partir de então, far-se-ia fidelíssimo súdito d’Aquela que, em conseqüência mesma da mensagem, se tornava sua Rainha e Senhora. Com efeito, por disposição divina, a humilde Maria reinava agora sobre os Serafins e Querubins, Tronos, Dominações, Potestades e demais coros angélicos.
O que, entretanto, significa a designação “cheia de graça”, qualidade pela qual Deus definiu perfeitamente Maria, como a Si próprio se identificou a Moisés: “Eu sou Aquele que é” (Ex. 3, 14)? Com toda certeza indica que à Santíssima Virgem Ele outorgou todos os privilégios e predicados sobrenaturais susceptíveis de serem comunicados a uma mera criatura. Por este motivo diz o Papa Alexandre III: "Maria concebeu sem ofensa ao pudor, deu à luz sem dor e deixou esta Terra sem corrupção, segundo a palavra do anjo, ou melhor, de Deus pelo anjo para que se demonstrasse cheia, não semi-cheia, de graça”.(2)
É precisamente um desses singulares privilégios –– a Assunção de Nossa Senhora ao Céu em corpo e alma –– que a Santa Igreja comemora a 15 de Agosto. E ao qual Catolicismo sempre fiel a uma ardentíssima devoção à Virgem Santíssima, que anima suas páginas desde o primeiro número ––presta sua filial e reverente homenagem.
Nossa Senhora da Glória
Presente na piedade dos fiéis desde remotíssimos tempos da Cristandade, sustentada por uma plêia de incontável de Santos, doutores e teólogos, continuamente reverenciada e louvada pelas almas verdadeiramente mariais ao longo da História, a gloriosa Assunção de Nossa Senhora foi solenemente definida pelo Papa Pio XII, na Constituição dogmática Munificentissimus Deus, de 1º de novembro de 1950.
Eis as palavras com que, naquele Ano Santo, o Pontífice pronunciava a sentença tão ansiosamente esperada:
"Pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma de revelação divina que a Imaculada Mãe de Deus sempre Virgem Maria, cumprido o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à Glória celeste”.(3)
"Cumprido o curso de sua vida terrena”. Teria Nossa Senhora subido ao Céu sem passar pela morte? Ou, ao contrário, teria, a exemplo de seu Divino Filho, morrido, ressuscitado e sido conduzida pelos anjos ao Céu? É precisamente a segunda opinião a mais comum entre os teólogos, que, em sua maioria, sustentam mesmo que a "Dormição" de Nossa Senhora –– tão suave fora sua passagem pela morte! –– durou três dias, ao fim dos quais, tal como nosso Divino Salvador e seu Filho Santíssimo, ressuscitou gloriosamente.
Seja-nos permitido imaginar a celestial cena: foi provavelmente na casa de SãoJoão Evangelista –– que sendo dado a Maria por filho, A recebera como Mãe (e que Mãe!) –– que a Virgem Santíssima cumpriu "o curso de sua vida terrena".
Regiamente reclinado sobre o leito, rodeado pelos apóstolos e por invisíveis multidões de anjos, aquele corpo Sacrossanto, agora exânime, aguardava o momento da ressurreição. As amarguras inerentes à morte ali não se teriam feito sentir, em virtude de uma especial presença sobrenatural, intensa, radiosa, envolvente e carregada de esperanças, que animava a todos aqueles corações fiéis. E enquanto um angélico coro se fazia ouvir e a presença da graça se intensificava mais e mais, o Santíssimo corpo da divina Mãe conhecia sua efêmera morada nesta Terra.
Tão logo se cumpriu o que foi, certamente, a vontade d’Ela, em estreitissima e inefável união com os eternos desígnios de Deus, eis que chega o momento de Sua ressurreição e gloriosa Assunção. Resplandescente de glória, ante os olhares extasiados dos apóstolos, a Santíssima Virgem é lentamente elevada ao Céu pelo ministério dos anjos, entre cantos de júbilo e aclamações celestiais.
Indissociável de sua gloriosa coroação pela Santíssima Trindade, a Assunção de Nossa Senhora bem exprime Seu incomparável triunfo e sua inexcedível glória entre todas as criaturas.
É por isso que no Brasil, segundo antiga tradição portuguesa, honra-se a Assunção da Santíssima Virgem com a devoção a Nossa Senhora da Glória.
“Porei inimizades...”
Na Constituição dogmática Munificentissimus Deus, diz o Papa Pio XII: “Desde o século II Maria Virgem é apresentada pelos Santos Padres como a nova Eva estreitamente unida ao novo Adão [Nosso Senhor Jesus Cristo] se bem que subordinada a Ele, naquela luta contra o inimigo infernal que, como foi prenunciado no Proto-evangelho (Gen. 3, 15), havia terminado com a pleníssima vitória sobre o pecado e sobre a morte sempre unidos nos escritos doApóstolo das Gentes [São Paulo] (cfr. Rom., caps. 5 e 6; I Cor. 15, 21-26; 54, 57). Por onde, como a gloriosa ressurreição de Cristo foi parte essencial e signo final desta vitória, assim também para Maria a comum luta deveria concluir com a glorificação de seu corpo virginal porque, como diz o mesmo Apóstolo, quando... este corpo mortal for revestido de imortalidade, então sucederá o que está escrito: a morte foi absorvida na Vitória (I Cor. 15, 54)" 4.
O Gênesis, primeiro livro do Antigo Testamento, contém uma passagem (Gen. 3, 15), na qual de tal modo é prenunciada a vinda e a Missão de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Sua Mãe Santíssima que os teólogos a chamam Proto-evangelho, o primeiro Evangelho ou, em outros termos, o Evangelho por antecipação. Nele está revelado que Deus disse à serpente infernal, após a queda de nossos primeiros pais: “Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dEla: Ela te esmagará a cabeça..” (Gen. 3, 15).
“ essa uma inimizade toda divina”, comenta S. Luís M. Grignion de Montfort.(5) Ou seja, por Deus mesmo estabelecida.
É uma inimizade entre Nossa Senhora e o demônio sem dúvida, mas também entre a descendência espiritual de Nossa Senhora e a do demônio. Isto é, entre os filhos da Virgem, devotos de Nossa Senhora, e os sequazes do demônio, filhos da concupiscência: de Satanás, do mundo e da carne.
Essa inimizade inextinguível resulta numa luta que perpassa a História da Humanidade de ponta a ponta. É mesmo –– para quem compreende a fundo o acontecer humano –– o próprio eixo da História dos homens.
O Proto-evangelho anuncia, pois, a Virgem esmagando a cabeça do demônio, para indicar de que modo íntimo Maria está associada à vitória final de Cristo sobre Satanás, a antiga serpente (Ap. 12,9).
Assim, Maria triunfou com Cristo sobre o pecado e a concupiscência, obra do demônio. Mas também sobre a morte, conseqüência dessa obra. Triunfou da morte mediante sua santa e gloriosa Assunção.
“Arca de Santificação”
Alguns salmos cantam, no entender de Santos e doutores, a gloriosa Assunção de Maria:
"Levantai-vos, Senhor, de vosso repouso, Vós e a arca de vossa santificação (SL. 131,8)."Estas palavras –– diz Santo Alberto Magno –– acredita-se com certeza que foram ditas figuradamente de Maria, cujo corpo foi arca de Cristo”.(6)
"A Rainha assistiu à vossa direita com vestimenta dourada, cercada de variedades" (SI. 44, 10).
"Tal vestimenta dourada se atribui a Maria, já que sua carne santíssima se revestiu da imortalidade, como esplêndidos vestidos de ouro".(7)
Os três florões
Desde a Antigüidade, tanto no Oriente quanto no Ocidente, os fiéis católicos professam, com ardorosa convicção, sua fé na Assunção de Nossa Senhora.
A esse propósito generalizou-se a distinção entre a Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo e a Assunção de Nossa Senhora. No primeiro caso, a expressão indica que Nosso Divino Salvador, 40 dias após sua gloriosa Ressurreição, subiu ao Céu por própria virtude. No segundo, que a Santíssima Virgem foi conduzida à glória celestial pelo ministério dos anjos. Tal fato, porém, não importa em afirmar que Nossa Senhora não poderia ter subido ao Céu sem o concurso angélico, pois que a agilidade é um dos predicados dos corpos gloriosos. Mas sim que, para maior glória de Maria, dispôs Deus que o trânsito de Sua Santa Mãe desta Terra para a glória celeste se fizesse mais convenientemente pelo ministério angélico.
"Ao terceiro dia, [Nossa Senhora] foi elevada com seu corpo ressuscitado. Isto é piedosamente crido pelos fiéis e confirmado pelos doutores", diz Santo Antonino de Florença. (8)
Santo Tomás de Villanueva afirma: "Hoje celebramos triplice festividade: o trânsito da Virgem, mediante a qual ela deixou a vida; sua ressurreição pela qual foi revestida da imortalidade, e sua gloriosa assunção pela qual voou feliz ao céu em corpo e alma”. (9)
No mesmo sentido, cantaram as glórias de Maria assunta ao Céu São Carlos Borromeo, Arcebispo de Milão, São Francisco de Sales, Bispo de Genebra, Santo Afonso Maria de Ligório, Bispo de Santa Águeda, e muitos outros Santos e doutores.
O clamor crescente do orbe católico pela definição do dogma manifestou-se eloqüentemente pelos Padres do Concílio Vaticano I, que subscreveram uma petição neste sentido. E mais tarde, pelos Bispos da Espanha, América Espanhola e Portugal que, reunidos no Congresso Mariano em Sevilha, no ano de 1929, pediram ao Santo Padre Pio XI a definição dogmática da Assunção da Bem-aventurada Mãe de Deus com as seguintes palavras:
"Os abaixo-assinados, bispos espanhóis, hispano-americanos e portugueses, reunidos em Sevilha para celebrar o Congresso Mariano, confiando piedosamente em Deus que brilhará o dia desejado em que possam definir-se dogmaticamente, como verdades reveladas por Deus, a Mediação Universal da Virgem Maria Mãe de Deus, e Sua assunção corporal ao céu, humildemente suplicam a Vossa Santidade que, segundo sua sabedoria e piedade insigne para com a Bem-aventurada Virgem, receba benignamente esses desejos, que são os de todos os fiéis de Cristo congregados nesses dias em Sevilha, e se digne defini-las com a autoridade suprema da Sé Apostólica”.(10)
Pio XII posteriormente atendeu em parte, tão justo apelo, proclamando, como dissemos, solenemente, o dogma da Assunção de Nossa Senhora em corpo e alma ao Céu. Resta outra definição, ainda não proclamada, entretanto não menos cara aos corações católicos: a da Mediação Universal de Maria Santíssima.
Com efeito, são esses dois privilégios singulares acima referidos, juntamente com a Imaculada Conceição da Virgem Mãe de Deus –– definido por Sua Santidade o Papa Pio IX –– os três principais florões que ornam a coroa de glória da Rainha do Céu e da Terra.
Roguemos pois a Ela que não tarde o dia em que mais este título de glória lhe seja reconhecido solenemente pela Suprema autoridade Apostólica.
Vinde ó Maria, e não mais tardeis
Não poderíamos encerrar as presentes considerações –– que nos reportam a épocas menos calamitosas do que a nossa –– sem que voltemos o olhar, carregado de aflições, angústias e também de esperanças, para o presente momento histórico.
Com efeito, em seus 20 séculos de existência, jamais a Santa Igreja de Deus se viu atingida por tão devastadoras borrascas; jamais imergiu em tão profunda e generalizada crise; jamais enfrentou tantos e tão ferozes inimigos, e, sobretudo, jamais foi objeto de tão ousada e infernal investida: a da autodemolição denunciada por Paulo VI.(11).
O alcance e a profundidade dessa crise foram descritos com extraordinária precisão e clareza, pelo Prof. Plinio Coma de Oliveira que, com seu ardente e incomensurável amor à Igreja, soube identificar-lhe as causas e apontar-lhe os remédios, em seu magistral ensaio Revolução e Contra-Revolução.(12)
Como ele, e a exemplo dele, são cada vez mais numerosas as almas que, pelos quatro cantos da Terra, têm os olhos postos nos dias de glória inigualáveis que advirão à Santa Igreja e à Cristandade. Dias que, para além das tragédias apocalípticas previstas por Nossa Senhora em Fátima, já se podem divisar no horizonte.
Dias de catástrofes, dias de punição, entretanto também dias de misericórdia e de glória.
Nesses dias de glória, queira Nossa Senhora receber entre muitas outras homenagens e manifestações de veneração, o complemento da definição de Sua gloriosa Assunção, ou seja, a solene proclamação e dogmática definição de Sua Universal mediação entre o Divino e único Mediador necessário, Nosso Senhor Jesus Cris to, e os homens.
Refulgirá então em sua coroa de glória o terceiro florão, alegria e honorificência da Igreja e da Cristandade, nos prometidos dias do vindouro Reino do Imaculado Coração de Maria.
Arnóbio Glavam
NOTAS
1. São Luís M. Grignion de Montfort, Tratado da. Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, Vozes. Petrópolis, 1984. 13' ed., p. 30
2. Apud Gregorio Alastruey. in Tratado de la Virgem Santíssima. BAC, Madri, 1961. p. 492.
3. Idem. ibidem, p. 489.
4. Idem. ibidem. p. 491.
5. São Luís M. Grignion de Monúort, op. cit, p.306.
6. Gregorio Alastruey. op. cit, p. 492.
7. Idem. ibidem, p. 492.
8. Idem. ibidem, p. 501.
9. Idem, ibidem. p. 501-502.
10. Idem, ibidem, p. 502-503.
11. Insignamenti di Paolo VI. Tipografia Poliglotta Vaticana. vol. VI, p. 1188.
12. Plinio Corrêa de Oliveira. Revolução e Contra-Revolução, Diário das Leis, São Paulo, 1982, 2ª edição.
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