A pesquisa histórica moderna ajuda a conhecer melhor a pessoa histórica de Jesus. Mas este conhecimento não nos permite reduzir a Sua pessoa à nossa imagem, fazendo Dele um burguês confortável ou uma figura de reformador político-social. Nem chega para se chegar à fé cristã e acolher a mensagem da pessoa que revolucionou a História e o destino da Humanidade.
Por volta da Páscoa, muitos jornais e revistas populares apresentam um artigo sobre algum aspecto de Jesus ou da fé judaico-cristã. Muitas vezes, esses recursos para tentar despertar o interesse dos leitores usam manchetes garrafais. Perguntam: Qual é a verdadeira história da Páscoa? Porque teve Jesus de morrer? Como vêem Jesus judeus, muçulmanos e budistas? Quem foi o verdadeiro Jesus? Muitas vezes, os artigos pretendem dar a conhecer novas e recentes descobertas sobre a pessoa e a identidade de Jesus.
Acreditamos que os cristãos possam ler estas apresentações com interesse, mas devem perceber que tais retratos populares de Jesus provavelmente pouco irão acrescentar aos seus conhecimentos e prática da fé. As pessoas não precisam de se alarmar por esses artigos de revista. Na verdade, a popularidade desse material mostra o interesse contínuo, em larga escala pública, pela pessoa e pela missão de Jesus. Portanto, como crentes adultos, vamos admitir que temos muitas perguntas recorrentes sobre Jesus e o Seu significado para as nossas vidas e para a vida do mundo. Onde podemos e devemos procurar respostas às nossas perguntas?
Começar a busca
Para os cristãos, a principal fonte escrita da fé sobre a pessoa de Jesus são as Sagradas Escrituras, os Evangelhos, em particular. Contamos com quatro livros incluídos no Novo Testamento: os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João. Quase tudo o que a Igreja cristã ensina sobre Jesus vem através do Evangelho. Evangelhos que, por sua vez, servem como critério de verdade e autenticidade para o ensinamento da Igreja sobre Jesus.
Porque os Evangelhos são a fonte central para a compreensão de Jesus, tem de se perguntar: o que é um evangelho? Entre parênteses, os leitores vão notar que antes de abordar questões específicas sobre Jesus, é necessário analisar algumas bases gerais em que assenta a nossa fé. «Evangelho» traduz o vocábulo grego eu (bom) e angelion (notícias, anúncio). Como «boas notícias», os Evangelhos comunicam a mensagem da acção salvífica de Deus em Cristo e as narrativas da actividade de Jesus, produzidas pela Igreja primitiva.
O Evangelho é uma espécie muito singular de literatura escrita, é um género de escrita que é diferente de outras formas literárias. Assim, o Evangelho não é simplesmente uma «biografia», no sentido moderno do termo (a narração minuciosa da vida de alguém), não é, portanto, «história» no sentido de uma apresentação cronológica de uma série de acontecimentos. No entanto, os Evangelhos contêm tanto elementos biográficos como históricos. Contudo, os Evangelhos foram escritos de uma outra perspectiva e com outro motivo em mente.
Um evangelho pode ser descrito simplesmente como uma «síntese da fé». Os Evangelhos contêm material que levarão os leitores a conhecer e a amar – na fé – a pessoa de Jesus. Isto significa que os materiais biográficos e históricos estão ao serviço do objectivo principal dos Evangelhos: chegar a um conhecimento e a uma experiência de Jesus, motivados pelo amor. Os Evangelhos pretendem ajudar-nos a conhecer e encontrar Jesus, pessoalmente, não apenas conhecer muitos pormenores factuais sobre Ele. Isto explica a minha escolha para um livro editado em 1989 sobre cristologia: «Conhecer Jesus Cristo: Uma Fonte Cristológica».
Outra maneira simples de expressar a natureza dos Evangelhos é aceitar que foram escritos «de fé para fé». Os Evangelhos surgiram a partir da fé viva dos evangelistas e da Igreja primitiva. Eles foram escritos para a fé, para gerar e fortalecer a fé dos crentes. Os evangelistas (escritores dos Evangelhos) não tinham intenção de fornecer todos os pormenores sobre a vida de Jesus. Em vez disso, optaram por incluir as histórias que melhor serviriam a «promoção da fé». No fundo, os Evangelhos são «proclamação» não biografia ou história. Esta visão é bem expressa por João Evangelista: «Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram registados para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome (Jo 20,30-31).
Redigir os Evangelhos
Relacionadas com a natureza e propósito dos Evangelhos, podem surgir perguntas sobre como e quando foram escritos. Neste ponto, a Igreja Católica tem fornecido orientações sólidas sobre o «processo de escrita» real, explicando o «vir-a-ser» dos Quatro Evangelhos que aceitamos como a inspirada Palavra de Deus.
Os cristãos acreditam que os autores da Bíblia (Antigo e Novo Testamentos) foram inspirados ou guiados pelo Espírito Santo. Segundo a teologia católica, isto não significa que Deus tenha falado directamente com os autores bíblicos, como se poderia ditar uma carta a um secretário. Nem os evangelistas dispunham de equipamentos modernos, como um gravador, para captar as palavras literais de Jesus. Pelo contrário, a Igreja sustenta que estes textos inspirados foram escritos por aqueles autores, impulsionados pelo Espírito Santo, que transmitiram a verdade revelada de Deus usando as suas próprias aptidões, palavras e estilos. Isto é evidente em cada um dos quatro Evangelhos, por exemplo, o estilo literário de João difere do de Mateus, Marcos e Lucas.
Em suma, as Escrituras contêm «a Palavra de Deus nas palavras humanas». Deus é o autor supremo das Escrituras; a verdade que Deus transmite nelas e através delas é fidedigna e podemos, com segurança, construir a nossa fé mediante essas Escrituras tal como foram redigidas e interpretadas no seio da comunidade de fé da Igreja.
E a Igreja Católica incentiva também a investigação histórico-crítica para melhor penetrar no sentido pleno da Palavra de Deus. Desde 1943 e da Magna Carta dos Estudos Bíblicos (Divino Afflante Spiritu, a encíclica do Papa Pio XII sobre os estudos bíblicos), os estudos das Escrituras floresceram na Igreja – tudo em benefício dos fiéis. A Igreja incentiva os seus teólogos e estudiosos da Bíblia a empregarem abordagens «científicas» que aprofundem a reflexão sobre o significado pleno da mensagem de Deus revelada nas Escrituras.
A Igreja aceita que os Evangelhos não são narrações literais, relatos cronológicos das palavras e dos actos de Jesus. Os nossos Evangelhos são o produto de um desenvolvimento da fé no Cristianismo primitivo. Surgiram através de um processo em três fases que vai (a) do ministério e da pregação oral de Jesus, (b) passando pela pregação dos apóstolos e (c) finalmente, até à redacção dos Evangelhos como os conhecemos.
Este facto não implica em qualquer sentido que os Evangelhos não são fontes fidedignas. Hoje, é geralmente aceite que os Evangelhos foram escritos pela seguinte ordem: Marcos (anos 60), Mateus e Lucas (anos 70-80), e João (anos 90).
Teólogos pastorais
Os evangelistas não estavam sobremaneira interessados em apresentar uma cronologia histórica minuciosa da vida de Jesus nem em fornecer uma biografia ampla de Jesus. Os escritores dos Evangelhos centraram-se principalmente em mostrar a importância e o significado de Jesus às pessoas que se abriam à fé. Assim, embora não negando nem falsificando dados e factos históricos, o principal interesse dos Evangelhos é mostrar a importância da pessoa de Jesus para nós e para a nossa salvação.
Para atingir este objectivo de «promover a fé», cada evangelista modela o seu evangelho de maneira diferente. Mateus, escrevendo para judeus cristãos, muitas vezes demonstra, pelo uso de citações do Antigo Testamento, que as Escrituras são cumpridas na pessoa e obra de Jesus. Marcos procura enfatizar que Jesus se manifesta como o Messias crucificado, frequentemente rejeitado pelas pessoas. O Evangelho de Lucas é moldado pela sua mentalidade religiosa; ele é um fiel relator da bondade de Jesus. O conjunto do pensamento de João é dominado pelo mistério da Encarnação.
Cada um dos Evangelhos é único e adopta variadas ênfases teológicas, mantendo-se centrado na pessoa de Jesus. Isto foi feito para que a mensagem de Jesus atingisse melhor o público-alvo. Neste sentido, chamo aos evangelistas «teólogos pastorais», porque modelam pastoralmente e centram a sua mensagem teológica com o público em mente. Mateus, por exemplo, citou frequentemente o Antigo Testamento para que o seu público judaico-cristão chegasse mais facilmente à fé em Jesus. Embora tenhamos quatro evangelhos canónicos, eles convergem para produzir um retrato evangélico integrado da pessoa de Jesus.
Jesus histórico
Várias questões ainda podem logicamente surgir na mente dos leitores – mesmo depois da ossa discussão sobre a natureza e a finalidade dos Evangelhos. Estas e outras perguntas podem ser seiitas: quem é o verdadeiro Jesus? Como posso encontrá-Lo? É realmente necessário para mim saber muitos pormenores sobre o Jesus histórico?
Ao longo das últimas décadas, a Igreja tem visto aparecerem estudos de «investigação sobre Jesus» ou «Jesus histórico». Simplesmente, essas investigações procuram a superfície cognoscível dos dados históricos sobre Jesus de Nazaré. Assim, o «Jesus histórico» refere-se a Jesus de Nazaré, na medida em que o curso da sua vida terrena pode ser construído por métodos históricos críticos. John P. Meier, padre católico e biblista, é o mais notável autor deste tópico; já publicou quatro volumes maciços na continuação da série «Um Judeu Marginal: Repensar o Jesus Histórico». É de salientar que o trabalho de Meier foi publicado com um imprimatur, o que significa que é totalmente coerente com a fé da Igreja.
Meier faz uma distinção muito útil para o uso de termos diferentes, proporcionando maior clareza de pensamento e salvaguardando a base da nossa fé. Ele distingue entre o Jesus real, o Jesus histórico e o Jesus teológico. Resumidamente, o Jesus histórico é uma moderna construção teórica dos dados da vida de Jesus, confiando fortemente nos Seus últimos dois ou três anos aqui na Terra. O Jesus teológico é a interpretação aplicada a Jesus ressuscitado pela comunidade cristã e pelos próprios escritores do Evangelho. O verdadeiro Jesus, embora decerto em continuidade com o Jesus que viveu na Terra há 2000 anos e ancorado nas formulações teológicas da Igreja, é o Jesus vivo, crucificado-ressuscitado que os cristãos agora encontram pessoalmente por mediação da Igreja. Com demasiada frequência, as pessoas misturam os três, especialmente para equacionar o Jesus histórico com o verdadeiro Jesus. Sempre pensam que, se souberem todos os pormenores sobre o Jesus histórico, irão chegar ao verdadeiro Jesus.
Onde está esse verdadeiro Jesus, o Senhor Crucificado-Ressuscitado, para ser encontrado e experienciado? Através da acção do Espírito Santo, os cristãos de hoje – o leitor e eu – encontram a pessoa viva de Jesus nas Sagradas Escrituras, nas nossas orações, no ensinamento da Igreja, na liturgia e nos sacramentos, e nas obras de caridade do serviço aos nossos irmãos e irmãs. Por outras palavras, por exemplo, uma pessoa que se aproxima dos Evangelhos ou participa na liturgia da Igreja encontra o verdadeiro Jesus, e essa pessoa não tem de ter estudos académicos especiais sobre o Jesus histórico.
Embora o «Jesus histórico» seja uma construção intelectual, semelhante conhecimento é útil para a educação cristã no mundo moderno. Acredito que a fé de muitas pessoas de hoje pode ser enriquecida pela compreensão do Jesus histórico. Tenho também a certeza de que os meus adorados pais tiveram um profundo encontro de fé com Jesus, embora nunca tenham explorado tais questões como o faço nesta apresentação. John Meier escreve: «Para um católico, a realidade plena de Jesus Cristo é mediada através de muitos canais […]. A minha fé em Cristo não aumenta nem diminui com as minhas tentativas de afirmar o que pode ou não pode saber-se sobre Jesus de Nazaré por meio da pesquisa histórica moderna.»
Servir a Fé
O Jesus histórico, embora não o objecto ou a essência da fé, pode servir os interesses da fé de várias maneiras. Primeiro, protege contra qualquer tentativa de reduzir a fé em Cristo a um ideal, um arquétipo intemporal, um modelo a imitar. Jesus, uma pessoa humana real, caminhou na superfície da Terra. Como declarou o Concílio Vaticano II, «Ele trabalhou com mãos humanas, pensou com uma mente humana, agiu por vontade humana, amou com um coração humano» (Gaudium et Spes, 22).
Em segundo lugar, aceitar o Jesus histórico significa que não vamos ser tentados a reduzir Jesus apenas à Sua natureza divina; temos de aceitar a Sua plena humanidade, juntamente com a Sua divindade plena. Em terceiro lugar, conhecer o Jesus histórico significa que não podemos reduzi-lO à nossa imagem, fazendo Dele uma figura burguesa confortável ou um reformador político-social. Jesus recusa-Se a estar contido nos compartimentos que criámos para Ele.
Finalmente, a nossa compreensão do Jesus histórico pode servir a fé, porque o conhecimento adquirido pode ajudar, especialmente aqueles que pregam a Palavra de Deus, a desempenharem melhor a tarefa da proclamação do Evangelho no mundo de hoje.
Retrato histórico de Jesus
Além dos Evangelhos, há várias testemunhas seculares que atestam a existência verdadeira de Jesus, embora não se recordem de nada especificamente sobre o Seu nascimento. Três escritores romanos afirmam a existência real de Jesus aqui na Terra: (a) Suetónio, um compilador de biografias dos imperadores romanos, (b) Tácito, o historiador que escreveu os Anais, e (c) Plínio, o Jovem, político e escritor, que serviu como legado imperial na Bitínia.
O historiador judeu Flávio Josefo (37-100?), autor das Antiguidades Judaicas (20 volumes) e da Guerra dos Judeus, fala de Jesus duas vezes nas suas Antiguidades (vols. 18 e 20). Quando Josefo escreve sobre a vida de Pôncio Pilatos, menciona Jesus e dá uma referência minuciosa, confirmando que Pilatos O «condenou à Cruz».
Os historiadores modernos August Franzen e John Dolan em A História da Igreja (p. 3) notam que «fontes não cristãs atestam a existência histórica de Jesus […] [Esses registos] são historicamente fidedignos e conclusivos, e podemos admiti-los como prova de confiança».
A fé cristã, fundada sobre certas – embora limitadas – provas históricas, está firmemente estabelecida em bases sólidas, tanto de fontes e documentos cristãos como seculares. O que a moderna investigação histórica pode recuperar sobre Jesus é apenas uma parte do retrato completo do «Jesus da História»; há muitas coisas que Jesus disse e fez a que a pesquisa histórica moderna não tem acesso. Dentro desses limites, um consenso comum pode ser elaborado, um retrato com que a maioria dos estudiosos concorde.
Jesus era um judeu palestino, nascido de uma mulher chamada Maria, casada com José. Viveu no primeiro terço do século I, tendo nascido nos últimos dias de Herodes, o Grande (37-4 a. C.). Viveu a maior parte da Sua vida adulta na Galileia, era originário da pequena aldeia de Nazaré e, posteriormente, durante o Seu ministério público, na região do mar da Galileia, teve Cafarnaum como Sua base. Ele e José parecem terem sido artesãos.
Jesus era um judeu devoto, um pregador itinerante, que usou parábolas e histórias de forma eficaz. O lema da Sua mensagem foi a vinda do reino de Deus, uma metáfora tradicional judaica da transformação e renovação que Jesus tinha adaptado a partir da pregação de João Baptista, cuja missão tinha de alguma forma inspirado o próprio ministério de Jesus. Reuniu à Sua volta um grupo de discípulos, com realce para Simão bar Jonas e o irmão André, e os dois filhos de Zebedeu, João e Tiago. A formação dos «doze» foi uma escolha do próprio Jesus no Seu ministério.
A missão de Jesus estava praticamente limitada aos judeus e ao território judaico. Tanto nos Seus ensinamentos como nas curas, Jesus acolheu abertamente os pecadores e outras pessoas marginalizadas. O Seu era um ministério que quebrava barreiras. Este aspecto inclusivo da Sua mensagem foi também comunicado pelo facto de se sentar à mesa com uma grande variedade de pessoas que eram objecto de exclusão religiosa.
A mensagem de Jesus, incluindo a Sua interpretação liberal da Lei Judaica e a Sua associação aberta com os pecadores, provocou a oposição de muitos líderes religiosos judeus, como os fariseus. Por fim, Jesus e a Sua mensagem chegaram ao conhecimento das autoridades romanas em Jerusalém. Os Evangelhos sugerem uma ação pública no templo por parte de Jesus. Isto provocou a apreensão das autoridades e conduziu à Sua detenção. A crucificação de Jesus pelos Romanos aconteceu durante a prefeitura de Pôncio Pilatos (23-36 d. C.) o sacerdócio de Caifás (18-36 d. C.). Foi sepultado no mesmo dia. A participação das autoridades religiosas judaicas na morte de Jesus permanece uma questão em aberto.
Dias depois, no primeiro dia da semana, o Seu túmulo foi encontrado vazio, e os Seus seguidores relataram aparições Dele vivo, como «Senhor ressuscitado» (por exemplo, Mt 28:1-10; Mc 16:1-20; Lc 24:1-53; Jo 20:1-29, 21:1-23, I Cor 15:5-8).
Como mencionei atrás, praticamente todos os modernos estudiosos da Bíblia estão de acordo em relação a esta descrição mínima histórica de Jesus de Nazaré.
JAMES H. KROEGER
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