Seria preciso começar por dizer que São Dimas — o “bom ladrão” — não foi canonizado pela Igreja, mas pelo próprio Jesus Cristo, Nosso Senhor. Essa “canonização” se encontra no preciso lugar indicado pelo missivista, isto é Lc 23, 43: “E Jesus disse-lhe: Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso”. Ora, em sentido genérico, santos são todos aqueles que sabemos com certeza que estão no Céu. Até as almas do purgatório, que estão destinadas ao Céu depois de um período de purificação, são chamadas “santas almas do purgatório”. Por isto, é justo atribuir a Dimas o título de Santo.
Trata-se de entender, com profundidade de vistas, o que se passou: a aceitação de Jesus Cristo pelo “bom ladrão” não foi uma aceitação qualquer, mas uma aceitação em circunstâncias muito especiais, que revelaram, por parte dele, uma alta densidade de fé, de esperança e de caridade, virtudes teologais essas que se encontram no ápice de todas as virtudes. Sua atitude corajosa e sublime, naquele momento, será rememorada e comemorada no Céu por todos os Santos, por toda a eternidade.
Analisemos a situação: Jesus estava pregado na Cruz. De baixo, provinham os insultos de todos os que clamavam pela sua morte, conforme descreve São Mateus: “E os que iam passando blasfemavam dele, movendo as suas cabeças e dizendo: Ó tu, que destróis o templo de Deus, e o reedificas em três dias, salva-te a ti mesmo; se és o Filho de Deus, desce da cruz. Da mesma sorte, insultando-o, também os príncipes dos sacerdotes com os escribas e os anciãos, diziam: Ele salvou outros, a si mesmo não pode salvar; se é rei de Israel, desça agora da cruz, e creremos nele. Confiou em Deus; se Deus o ama. que o livre agora; porque ele disse: Eu sou Filho de Deus” (Mt 27, 39-43).
Não era, portanto, apenas a turbamulta que insultava Jesus: ali estavam os representantes máximos do povo judeu, os príncipes dos sacerdotes e os anciãos.
São Lucas acrescenta um dado que não é registrado pelos outros evangelistas: “Insultavam-no também os soldados, os quais, aproximando-se dele e oferecendo-lhe vinagre, diziam: Se tu és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo” (Lc 23, 36-37). Desse modo, os soldados romanos, representando de algum modo a gentilidade, participavam da rejeição a Jesus Cristo.
E onde estavam os discípulos de Cristo? Todos haviam fugido. Apenas um deles se recompusera e estava ali, aos pés da Cruz, com Nossa Senhora, a Mãe de Jesus, e mais algumas santas mulheres que a acompanhavam. Portanto, a fidelidade também estava presente, representada maximamente por Maria Santíssima, que condensou em si a fidelidade de toda a humanidade.
Por fim, no ambiente de hostilidade geral, tomam posição os dois ladrões que estavam sendo crucificados junto com Jesus. A cena é descrita por São Lucas: “E um daqueles ladrões que estavam pendurados blasfemava contra ele, dizendo: Se tu és o Cristo, salva-te a ti mesmo e a nós. O outro, porém, tomando a palavra, repreendia-o, dizendo: Nem tu temes a Deus, estando no mesmo suplício? E nós estamos na verdade justamente, porque recebemos o [castigo] que merecem as nossas ações, mas este não fez nenhum mal. E dizia a Jesus: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino. E Jesus disse-lhe: Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 39-43).
O mau ladrão, chamado Gestas, estava interessado em que Jesus usasse de seus poderes divinos para que, salvando-se a si mesmo, salvasse a ele, ladrão. O “bom ladrão” toma a defesa de Jesus e faz um ato de fé na pessoa d’Ele e na vida futura, pedindo-Lhe que se lembre dele quando tiver entrado no seu Reino. Que diferença! Quanta grandeza de alma em associar-se Àquele que todos insultavam! Quanta coragem em dissociar-se dos que insultavam a Jesus e, portanto, O recusavam! Quanta humildade e reverência, quanta compreensão da superioridade daquele ser divino que sofria injustamente um suplício análogo ao seu, mas ainda maior!
E aqui entramos no fundo do problema: o discernimento dos espíritos de um lado; a dureza de coração, do outro.
“Eis aqui alguém que é mais do que Salomão”
Este é um problema tratado com certa freqüência por Nosso Senhor Jesus Cristo em sua pregação, e registrado pelos evangelistas. Limitar-nos-emos a uma passagem de São Lucas: “Esta é uma geração perversa; pede um sinal, mas não lhe será dado outro sinal, senão o sinal do profeta Jonas. Porque assim como Jonas foi um sinal para os ninivitas, assim o Filho do homem será um sinal para esta geração. A Rainha do Meio-Dia levantar-se-á no dia do Juízo contra os homens desta geração, e condená-los-á; porque veio dos confins da terra ouvir a sabedoria de Salomão; e eis aqui alguém que é mais do que Salomão. Os habitantes de Nínive levantar-se-ão no dia do Juízo contra esta geração, e condená-la-ão; porque fizeram penitência com a pregação de Jonas; entretanto, eis aqui alguém que é mais do que Jonas” (Lc 11, 29-32).
A Rainha do Meio-Dia é a Rainha de Sabá, referida no primeiro livro dos Reis (10, 1-13). Passamos a palavra ao comentarista da Bíblia Comentada, da Biblioteca de Autores Cristianos: Jesus “utiliza agora outra imagem. É a figura de Salomão, o rei por excelência sábio. Não apenas seus súditos, mas até da longínqua Sabá vem sua Rainha escutá-lo. Por isso, diante desta simples evocação, a conclusão se impunha: se uma rainha vem ‘dos confins da terra’ escutar a sabedoria de Salomão, a presente geração de judeus do tempo de Cristo estava mais obrigada a ouvir eficazmente sua Boa-Nova, pois não precisavam vir de longe e, sobretudo, porque Ele era ‘mais do que Salomão’” (Manuel de Tuya O.P., BAC, Madrid, 1964, tomo V, p. 298). Entretanto, o que aconteceu? Os judeus não só não quiseram ouvir a Nosso Senhor, como O crucificaram! — Por quê? Por causa da dureza dos seus corações, que levou à cegueira das mentes. Ora, foi precisamente esta a graça que recebeu Dimas, o “bom ladrão”. A graça que tocou o seu coração tornou-o capaz de ver que era Homem-Deus aquele que morria a seu lado, no patíbulo da Cruz! Proclamou-o diante de todos, e ouviu dos próprios lábios de Jesus o “decreto” de sua canonização: “Hodie mecum eris in Paradiso” (Lc 23, 43).
Olhos para ver quem está ao nosso lado
A dureza de coração é um fenômeno mais comum do que se pensa. É conhecido o fato ocorrido por ocasião da morte de Santa Teresinha do Menino Jesus, uma santa que brilhou nos Céus da Igreja sobretudo no início do século XX e até hoje atrai muitos corações. Uma pequena-grande Santa, declarada Doutora da Igreja em 1997. Quando estava no leito de morte, ouviu um comentário de uma de suas irmãs de hábito, o qual provinha da cozinha que estava próxima: “Não sei o que nossa Madre superiora vai dizer na nota de falecimento desta freira que nunca fez nada que a destacasse!”
Assim pode ser o fechamento de nossos corações a respeito de pessoas que mereceriam o nosso devotamento se nos déssemos conta de suas virtudes. Peçamos a São Dimas que nos obtenha uma graça semelhante à sua, para discernir o mérito das pessoas com as quais convivemos. Por contraste, saberemos também avaliar com justiça os defeitos de muitos aos quais distribuímos elogios que não merecem...
Esclarecimentos oportunos
Nos primórdios da Igreja, a “canonização” resultava do consenso dos fiéis. Com o correr do tempo, para evitar juízos errados, e poder indicar aos fiéis os verdadeiros santos como modelos de perfeição cristã, a Santa Igreja regulamentou as condições para o reconhecimento da santidade de alguém.
Quanto ao “bom ladrão”, os Evangelhos não fornecem sequer o seu nome. Dimas é o que nos chegou pela tradição. Uma vez que não há meio de sabê-lo por escritos, aceitamos o que a tradição nos transmitiu.
Por fim, o fato de apenas um dos evangelistas mencionar sua confissão da divindade de Cristo não é absolutamente razão para recusá-lo. Infelizmente, alguns espíritos críticos aplicam o princípio de “subtração” dos evangelistas, quando é mais sapiencial o de “adição”. Isto é, somemos o que eles registraram, e não subtraiamos. Os evangelistas nos transmitiram o que colheram em suas pesquisas. Aceitemos com fé e gratidão o trabalho que eles fizeram, guiados pelo Espírito Santo.
Monsenhor JOSÉ LUIZ VILLAC
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