Santo Antonio Abade, por Francisco de Zurbarán
No
século IV d.C., os desertos do Egito, Palestina, Arábia e Pérsia foram
habitados por uma raça de homens que deixou como rastro uma estranha reputação.
Foram os primeiros eremitas cristãos, indivíduos que abandonaram as cidades do
mundo pagão para viver sozinhos. Por que fizeram isso? As razões são muitas e
variadas, mas podem ser sintetizadas em apenas uma: a busca pela
"salvação". E o que era salvação? Com certeza, nada que pudesse ser
encontrado na mera conformidade exterior aos costumes e regras de um grupo
social. Naquele tempo, os homens haviam adquirido uma consciência aguda da
qualidade estritamente individual da "salvação". A sociedade - que
significava a sociedade pagã, limitada pelos horizontes e perspectivas da vida
"neste mundo" - era considerada por eles um naufrágio do qual cada
indivíduo por si só deveria nadar para salvar a própria vida. Não precisamos
nos deter aqui e discutir a justiça dessa visão, o que importa é considerá-la
como um fato. Esses homens acreditavam que deixar alguém à deriva,
sujeitando-se passivamente aos dogmas e valores do que conheciam como
sociedade, era um desastre puro e simples. O fato de que o imperador era agora
cristão e que o "mundo" começava a enxergar a cruz como símbolo de
poder temporal apenas reforçava a resolução deles.
Essa
resolução pode nos parecer muito mais estranha do que é, uma fuga paradoxal do
mundo no momento em que este havia atingido o ápice em termos de dimensão
(quase escrevi frenesi) e se tornado oficialmente cristão. Esses homens devem
ter pensado, como alguns raros pensadores modernos (Berdiaeff é um deles), que
não faz sentido a existência de algo como um "estado cristão". Eles
parecem ter duvidado de que cristianismo e política pudessem se misturar a
ponto de constituírem uma sociedade cristã plena. Em outras palavras, para
eles, a única sociedade cristã era espiritual e extramundana: o Corpo Místico
de Cristo. Trata-se com certeza de visões extremas e é quase um escândalo
lembrar delas em um tempo como o nosso, em que a cristandade é acusada por
todos os lados de pregar o negativismo e o retraimento - de não ter meios
efetivos para lidar com os problemas da sua época. Mas não sejamos muito
superficiais. Os Padres do Deserto lidaram com os "problemas de sua
época", na medida em que pertenciam à vanguarda de seu tempo, e abriram o
caminho para o desenvolvimento de um novo homem e uma nova sociedade.
Representam o que os filósofos sociais modernos (Jaspers, Mumford) chamam de o
surgimento do "homem axial", precursor do homem personalista moderno.
Os séculos XVIII e XIX, com seu individualismo pragmático, degradaram e
corromperam a herança psicológica do homem axial devida aos Padres do Deserto e
a outros religiosos contemplativos e prepararam o caminho para a grande
regressão à mentalidade de rebanho que prevalece hoje em dia.
A
fuga desses homens para o deserto não teve um caráter puramente negativo ou
individualista. Eles não se rebelaram contra a sociedade. É verdade que eram em
certa medida "anarquistas", e não seria errado considerá-los sob essa
perspectiva. Tratava-se de homens que não acreditavam em ser controlados e
comandados passivamente por um estado decadente, e que acreditavam na
existência de uma vida não atrelada à aceitação submissa dos valores aceitos e
convencionais. Contudo, não pretendiam se colocar acima da sociedade. Não a
rejeitavam com orgulho e desdém, como se fossem superiores aos outros homens.
Pelo contrário, uma das razões pelas quais fugiram do "mundo" foi que
os homens estavam divididos entre aqueles que atingiam o sucesso e impunham
seus desejos aos outros e aqueles que tinham de ceder e aceitar a imposição. Os
Padres do Deserto recusavam-se a ser comandados, mas não tinham nenhum desejo
de comandar. Tampouco fugiram da sociedade humana - o fato de fornecerem
"conselhos" uns aos outros evidenciava uma característica
eminentemente social. Buscavam uma sociedade em que todos os homens fossem
realmente iguais e a única autoridade abaixo de Deus fosse a autoridade
carismática da sabedoria, da experiência e do amor. Claro que aceitavam a
autoridade benevolente e hierárquica dos bispos, que, todavia, estavam muito
distantes e opinavam pouco sobre o que acontecia no deserto, até a grande
controvérsia origenista no final do século IV.
O
que os Padres queriam acima de tudo era encontrar a si mesmos em Cristo. E para
isso, tinham de rejeitar completamente o "falso eu", formal,
fabricado sob a coerção social no "mundo". Buscavam um caminho que
levasse a Deus e que não estivesse traçado, que pudesse ser escolhido livremente,
que não fosse predeterminado por outros de antemão. Buscavam um Deus que
pudessem encontrar por si mesmos, e não um Deus "recebido" em um
formato fixo e estereotipado. Não que rejeitassem as fórmulas dogmáticas da fé
cristã: eles as aceitavam e as adotavam em sua feição mais simples e elementar.
Porém, demoraram (pelo menos no início, no tempo da sabedoria primitiva) a se
envolver em controvérsias teológicas. A fuga aos horizontes áridos do deserto
significava também uma recusa ao contentamento com a verborragia técnica, de argumentos
e conceitos.
Estamos
falando exclusivamente de eremitas. Também havia cenobitas no deserto,
centenas, milhares deles, vivendo o "cotidiano" em mosteiros enormes,
como o fundado por São Pacômio em Tabena. Essas comunidades tinham uma ordem
social, uma disciplina quase militar. Contudo, o espírito ainda era em grande
parte de personalismo e liberdade, porque mesmo os cenobitas sabiam que suas
regras eram apenas uma estrutura externa, como uma armação de andaimes que os
ajudaria a construir as próprias vidas com Deus. Os eremitas, por sua vez, eram
sob todos os aspectos mais livres. Não tinham nada a que se
"conformar" exceto à vontade secreta, oculta e inescrutável de Deus,
que devia diferir notavelmente entre uma cela e outra! É bastante significativo
que o primeiro desses Verba (número 3) é aquele em que a autoridade de Santo
Antão é citada de acordo com o princípio básico da vida no deserto, qual seja,
que Deus é a autoridade e que além de Sua vontade manifesta há poucos
princípios, ou nenhum: "Portanto, ao perceber em sua alma qualquer desejo
em acordo com Deus, realize-o e assim manterá seu coração a salvo."
Claro
que tal caminho só poderia ser percorrido por alguém muito atento e sensível
aos sinais de um lugar ermo, sem trilhas. O eremita tinha de ser maduro em sua
fé, humilde, desapegado de si mesmo de forma atroz em todos os sentidos. Os
cataclismos espirituais que às vezes arrebatavam alguns dos visionários
soberbos demonstram as ameaças da vida solitária - como ossos embranquecendo na
areia. O Padre do Deserto não podia ser um iluminista. Não podia se arriscar ao
apego ao ego, ou aos perigos do êxtase da vontade própria. Não podia reter a
mais leve identificação com seu eu superficial, transitório e autoconstruído.
Deveria se deixar levar pela realidade interna e oculta de um eu transcendente,
misterioso, não totalmente conhecido e entregue a Cristo. O Padre do Deserto
deveria morrer para os valores da existência transitória como o fez Cristo na
cruz, e levantar-se dos mortos com Ele, sob a luz de uma sabedoria
completamente nova. Portanto, uma vida de sacrifícios, que tinha início após
uma ruptura explícita que separava o monge do mundo. Uma vida em permanente
"compunção", que o ensinava a lamentar a loucura do apego a valores irreais.
Uma vida de solidão e trabalho, pobreza e jejum, caridade e oração, que
removesse o antigo ego superficial e permitisse o surgimento gradual do eu
verdadeiro e secreto, no qual o crente e Cristo fossem "um único
Espírito".
Por
fim, o termo próximo de toda essa luta era "a pureza do coração" - a
visão nítida e desobstruída do verdadeiro estado das coisas, a compreensão
intuitiva da própria realidade interna como ancorada, ou entregue, a Deus por
intermédio de Cristo. O fruto desse processo era quies: "descanso".
Não o descanso do corpo, nem mesmo a estabilização do espírito exaltado em um
ponto ou ápice de luz. Os Padres do Deserto não eram, em sua maioria,
extáticos. Os que eram deixaram atrás de si algumas histórias enganosas e
esquisitas que confundem a questão essencial. O "descanso" que esses
homens buscavam era simplesmente a sanidade e o equilíbrio de um ser que não
necessitava mais olhar para si mesmo pois era levado pela perfeição da
liberdade que possuía. Aonde? A qualquer lugar que o Amor ou o Divino Espírito
considerasse apropriado. O descanso era, portanto, uma espécie de lugar-nenhum
e não-intencionalidade que perderam toda a preocupação com o "eu"
falso e limitado. Em paz, na posse de um "nada" sublime, o espírito
mantinha-se, em segredo, acima do "tudo" - sem se preocupar em saber
o que possuía.
Agora,
os Padres não estavam nem mesmo preocupados o bastante com a natureza do
descanso para falarem dele nesses termos, exceto muito raramente, como Santo
Antão, quando observou que "a oração do monge não é perfeita até que não
perceba mais em si mesmo o fato de estar orando". E isso foi dito
casualmente, de passagem. De resto, mantinham-se afastados de tudo que fosse
altivo, esotérico, teórico ou de difícil compreensão, ou seja, recusavam-se a falar
sobre essas coisas. Na verdade, não se dispunham muito a falar sobre nada, nem
mesmo sobre as verdades da fé cristã, o que explica a característica lacônica
dos ditos.
Portanto,
em muitos aspectos, os Padres do Deserto tinham muito em comum com os iogues indianos
e com os monges zen-budistas da China e do Japão. Se fosse necessário achá-los
nos Estados Unidos do século XX, teríamos de procurar em lugares insólitos e
remotos. Infelizmente, são seres raros. Com certeza não vicejam nas calçadas da
esquina da rua 42 com a Broadway. Talvez fosse possível encontrar homens dessa
espécie entre os índios Pueblo ou Navajo, mas esses casos seriam inteiramente
diferentes. Haveria a simplicidade e a sabedoria primitivas, mas arraigadas em
uma sociedade primitiva. No caso dos Padres do Deserto, a ruptura explícita com
o contexto social aceito e convencional ocorria para fugir e mergulhar em um
vazio aparentemente irracional.
Embora
seja possível argumentar que homens como os Padres do Deserto possam ser
encontrados em alguns de nossos mosteiros de religiosos contemplativos, eu não
iria tão longe. No nosso caso, trata-se de homens que deixam a sociedade do
"mundo" para entrar em um outro tipo de sociedade, a da família de
religiosos. Trocam os conceitos, valores e ritos de uma sociedade pelos da
outra. E considerando que hoje já temos séculos de monasticismo, é necessário
analisar o fato sob outra ótica. As "normas" sociais da família
monástica também tendem a ser convencionais, e viver sob essas regras não representa
um salto no vazio - apenas uma alteração radical de padrões e costumes. As
palavras e os exemplos dos Padres do Deserto têm participado tanto da tradição
monástica que o tempo os tornou estereótipos para nós, e não somos mais capazes
de discernir sua admirável originalidade. Nós os enterramos, por assim dizer,
em nossas rotinas e dessa maneira nos isolamos com segurança de qualquer choque
espiritual da falta de convencionalidade deles. Mesmo assim, minha esperança ao
selecionar e editar suas "palavras" é ter conseguido apresentá-las
sob uma nova luz e manifestar novamente seu frescor.
Os
Padres do Deserto foram pioneiros, não tinham nada a dar seguimento a não ser o
exemplo de alguns dos profetas, como São João Batista, Elias, Eliseu e os
Apóstolos, que também serviram de modelos. De resto, adotavam uma vida
"angélica" e seguiam os caminhos inexplorados dos espíritos
invisíveis. Suas celas eram como a fornalha de Babilônia, na qual, em meio às
chamas, encontravam-se com Cristo.
Eles
não almejavam a aprovação de seus contemporâneos, tampouco buscavam provocar
qualquer reprovação porque as opiniões dos outros passaram a não ter mais
importância. Não tinham nenhuma doutrina de liberdade estabelecida, mas de fato
tornaram-se livres pagando o preço da liberdade.
De
qualquer maneira, depuravam para si uma sabedoria muito prática e
despretensiosa, ao mesmo tempo atemporal e primitiva, e que nos permite reabrir
as fontes que foram poluídas ou bloqueadas pela recusa mental e espiritual
acumulada da nossa barbárie tecnológica. Nossa época necessita desesperadamente
desse tipo de simplicidade, necessita recuperar algo da experiência refletida
nessas linhas. O termo a ser enfatizado é experiência. As poucas frases curtas
reunidas neste livro têm pouco ou nenhum valor como informação apenas. Seria
inútil folhear estas páginas casualmente e observar que os Padres disseram isto
ou aquilo. Qual a vantagem em saber simplesmente que essas coisas foram ditas
algum dia? O importante é que foram vividas. Que emanam de uma experiência nos
níveis mais profundos da vida. Que representam uma descoberta do homem, ao
final de uma jornada interna e espiritual muito mais essencial e infinitamente
mais importante que a jornada até a lua.
O
que ganhamos por viajar até a lua se não formos capazes de cruzar o abismo que
nos separa de nós mesmos? Esta é a mais importante das viagens de descoberta, e
sua falta torna todo o resto não apenas inútil, mas também desastroso. Uma
prova: os grandes viajantes e colonizadores da Renascença foram, em sua grande
maioria, homens que talvez fossem capazes de fazer o que fizeram justamente
porque estavam alienados de si mesmos. Ao subjugar mundos primitivos, eles
apenas impuseram, com a força de canhões, sua própria confusão e alienação.
Exceções magníficas, como frei Bartolomeu de las Casas, São Francisco Xavier ou
padre Mateus Ricci, apenas comprovam a regra.
Os
ditos dos Padres do Deserto são recolhidos de uma coleção clássica, os Verba
Seniorum, da Patrologia latina de Migne (volume 73). Os Verba distinguem-se de
outras obras escritas dos Padres do Deserto pela plena falta de artifícios
literários, por sua simplicidade total e honesta. As Vidas dos Padres são muito
mais grandiloqüentes, dramáticas, estilizadas. Abundam em eventos maravilhosos
e milagres. São fortemente marcadas pelas personalidades literárias que as
protagonizaram. Os Verba, por outro lado, são relatos elementares e
despretensiosos disseminados boca a boca na tradição cóptica, antes de serem
estabelecidos pelo registro escrito em siríaco, grego e latim.
Sempre
claros e concretos, sempre remetendo à experiência do homem formado pela
solidão, estes provérbios e contos almejavam ser respostas simples a questões
simples. Aqueles que iam ao deserto em busca da "salvação" pediam aos
anciãos uma "palavra" que os ajudasse a encontrá-la - um verbum
salutis, "palavra de salvação". As respostas não pretendiam ser
prescrições gerais e universais. Ao contrário, eram chaves originalmente
concretas e exatas para portas específicas que deveriam ser cruzadas, em
determinados momentos e por determinados indivíduos. Apenas posteriormente,
após muita repetição e muita citação, as respostas começaram a ser consideradas
moeda comum. Para entender melhor estes ditos, precisamos levar em conta sua
característica prática e, poder-se-ia dizer, existencial. Mas na época em que
São Bento em sua Regra prescreveu a leitura freqüente e em voz alta das
"Palavras dos Padres" antes das Completas, os ditos já haviam se
tornado uma doutrina monástica tradicional.
Os
Padres eram homens humildes e calados, e não tinham muito a dizer. Respondiam
às perguntas com poucas palavras, iam direto ao ponto. Ao invés de fornecerem
um princípio abstrato, preferiam contar uma história concreta. Essa brevidade,
plena de conteúdo, alivia. Há mais luz e satisfação nestes ditos lacônicos do
que em muitos tratados ascéticos extensos, fartos de detalhes de como ascender
de um grau a outro da vida espiritual. As palavras dos Padres nunca são
teóricas na acepção moderna do termo. Nunca são abstratas. Tratam de coisas
concretas e dos trabalhos rotineiros da vida de um monge do século IV, mas o
que transmitem serve da mesma maneira a um pensador do século XX. As realidades
essenciais da vida interior estão presentes nelas: fé, humildade, caridade,
submissão, discrição, abnegação. No entanto, expressar o senso comum não é a
menor qualidade das "palavras de salvação".
Isto
é importante. Os Padres do Deserto adquiriram posteriormente a fama de
fanáticos em decorrência das histórias sobre seus feitos ascéticos, contadas por
admiradores indiscretos. De fato, eles eram ascéticos, mas, quando lemos suas
próprias palavras e vemos o que pensavam sobre a vida, descobrimos que em
hipótese alguma eram fanáticos. Eram pessoas humildes, caladas, sensíveis,
donas de um profundo conhecimento da natureza humana e suficiente compreensão
das coisas de Deus para perceber que sabiam muito pouco a Seu respeito.
Portanto, não se dispunham a proferir longos discursos sobre a essência divina,
ou mesmo falar sobre o significado místico das Escrituras. Se esses homens
falavam pouco sobre Deus, é porque sabiam que, quando alguém chegava a algum
ponto próximo à Sua morada, o silêncio era muito mais significativo que um
monte de palavras. O fato de o Egito, naquela época, fervilhar com controvérsias
religiosas e intelectuais era uma razão a mais para que mantivessem suas bocas
fechadas. Havia os neoplatônicos, os gnósticos, os estóicos e os pitagóricos.
Havia diversos grupos vocais de cristãos ortodoxos e heréticos. Havia os
arianos, a quem os monges do deserto resistiam veementemente. Havia os
origenistas, e alguns dos monges eram seguidores fiéis e devotados a Orígenes.
Em meio a todo esse barulho, o deserto não tinha outra contribuição a dar a não
ser um silêncio discreto e desapegado.
Os
grandes centros monásticos do século IV eram o Egito, a Arábia e a Palestina. A
maioria destas histórias referem-se aos eremitas da Nítria e de Cétia, ao norte
do Egito, próximas à costa do Mediterrâneo e a oeste do Nilo. Também havia
muitas colônias de monges no delta do Nilo. Tebaida, próxima à antiga Tebas,
mais em direção ao interior do Nilo, era um outro centro de atividade
monástica, especialmente dos cenobitas. A Palestina desde cedo atraiu monges de
todas as partes do mundo cristão, sendo São Jerônimo o mais famoso deles, que
viveu e traduziu as Escrituras em uma caverna de Belém. Em seguida, havia uma
importante colônia monástica ao redor do monte Sinai, na Arábia: os fundadores
do monastério de Santa Catarina divulgaram recentemente a "descoberta"
de obras de arte bizantinas preservadas lá.
Que
tipo de vida levavam os Padres? Uma explicação pode nos ajudar a compreender
melhor seus ditos. Os Padres do Deserto são normalmente chamados de
"abades" (abbas) ou "anciãos" (senex). Um abade não era,
como hoje, um superior eleito canonicamente pela comunidade, mas qualquer monge
ou eremita que tivesse passado anos no deserto e provado ser um servo de Deus.
Com eles, ou próximo a eles, viviam "irmãos" ou "noviços" -
aqueles que ainda estavam no processo de aprendizado da vida. Os noviços ainda
precisavam da supervisão contínua de um ancião, e viviam junto a um deles para
serem instruídos por sua palavra e exemplo. Os irmãos viviam por conta própria,
mas às vezes recorriam ao conselho de um ancião das redondezas.
A
maioria dos personagens representados nos ditos e histórias são homens "a
caminho" da pureza do coração, não homens que já a atingiram plenamente.
Os Padres do Deserto, inspirados por Clemente e Orígenes, e pela tradição
neoplatônica, às vezes se mostravam confiantes de que poderiam elevar-se acima
de todas as paixões e tornar-se impermeáveis à raiva, à lascívia, ao orgulho e
a todo o resto. Porém, podemos encontrar muito pouco nestes ditos que motivasse
aqueles que acreditavam na perfeição cristã como apátheia (impassibilidade). O
louvor aos monges "além de toda paixão" parece na verdade ser
proveniente de turistas que passaram brevemente pelo deserto e voltaram às suas
casas para escrever livros sobre o que haviam visto, e não daqueles que passaram
toda a vida em uma região inóspita. Estes últimos estavam muito mais inclinados
a aceitar as realidades comuns da vida e a se satisfazer com a porção ordinária
do homem que tinha de lutar toda a vida para se superar. A sabedoria dos Verba
pode ser vista na história do monge João, que se gabava de estar "além de
qualquer tentação", e foi aconselhado por um ancião perspicaz a orar a
Deus pedindo algumas poucas e boas batalhas concretas para que sua vida
continuasse a valer alguma coisa.
Em
certos momentos, todos os solitários e noviços reuniam-se para a synaxis
litúrgica (missa e orações em comum) e, depois disso, podiam comer juntos e
realizar uma espécie de assembléia para a discussão de problemas da comunidade.
Em seguida, retornavam à solidão e passavam o tempo trabalhando e orando.
Sustentavam-se
com o trabalho das próprias mãos, normalmente tecendo cestos e esteiras com
folhas de palmeiras e juncos. Vendiam esses artigos nas cidades vizinhas. Às
vezes há dúvidas nos Verba quanto a questões relacionadas ao trabalho e o
comércio envolvido. Caridade e hospitalidade eram questões de prioridade máxima
e precediam as rotinas ascéticas pessoais e o jejum. Os inúmeros ditos que
apresentam evidências dessa benevolência afetuosa deveriam ser suficientes para
responder a acusações de que os Padres odiavam a própria raça. Na verdade,
havia mais amor, compreensão e cordialidade verdadeiros no deserto do que nas
cidades, onde, como hoje, era cada um por si.
Este
fato é ainda mais importante porque a essência propriamente dita do
cristianismo é a caridade, a unidade em Cristo. Os místicos cristãos de todas
as épocas buscaram e encontraram não apenas a unificação do próprio ser ou a
união com Deus, mas a união entre si mesmos no Espírito de Deus. Buscar uma
união com Deus que implicasse uma separação completa, em espírito e corpo, do
resto da humanidade seria, para um santo cristão, não apenas absurdo, mas
também o oposto da santidade. O isolamento no eu, a inabilidade de sair de si
para ir ao outro, significaria a incapacidade para qualquer forma de
auto-transcendência. Portanto, ser prisioneiro de si mesmo é, na verdade, estar
no inferno: uma verdade que Sartre, embora confessando-se ateu, expressou de
maneira muito interessante na peça Entre quatro paredes (Huis Clos).
Em
todos os Verba Seniorum encontramos uma insistência reiterada na primazia do
amor sobre qualquer outro aspecto da vida espiritual: sobre o conhecimento, a
gnose, o ascetismo, a contemplação, a solidão, a oração. Na verdade, o amor é a
vida espiritual, sem o qual todos os outros exercícios do espírito, embora
elevados, ficam esvaziados de conteúdo e tornam-se meras ilusões. E quanto
maior a elevação, mais perigosa a ilusão. O amor, com certeza, significa muito
mais do que um simples sentimento, muito mais que favores ínfimos ou doadores
de esmolas rotineiros. Amor significa uma identificação interior e espiritual
com o irmão para que ele não se torne um "objeto" ao "qual"
se "faz um bem". O fato é que o bem feito ao outro na forma de objeto
tem pouco ou nenhum valor espiritual. O amor faz com que o indivíduo considere
o vizinho como seu outro eu e o ame com humildade, discrição, reserva e
reverência imensas e plenas, sem as quais ninguém pode se aventurar a ingressar
no santuário da subjetividade do outro. Desse amor, toda brutalidade
autoritária, toda a exploração, dominação e superioridade arrogante devem,
necessariamente, estar ausentes. Os santos do deserto eram inimigos de todo e
qualquer expediente, sutil ou flagrante, que o "homem espiritual"
utilizasse para intimidar aqueles que considerasse inferiores, gratificando
assim o próprio ego. Eles renunciaram a tudo que evocasse punição e vingança,
por mais recôndito que fosse.
A
caridade dos Padres do Deserto não se apresenta a nós como efusões pouco convincentes.
A plena dificuldade e magnitude da tarefa de amar o outro é reconhecida em toda
parte e nunca minimizada. É difícil amar de verdade o outro se o amor for
compreendido em seu sentido pleno. O amor demanda uma transformação interna
completa, pois, sem isso, não podemos nem mesmo nos identificar com nosso
irmão. Temos de nos transformar, de certa forma, na pessoa que amamos. E isso
envolve uma espécie de morte do nosso próprio ser, do nosso próprio eu. Não
importa o quão duramente tentemos, resistamos a essa morte: lutamos contra
raivas, recriminações, exigências, ultimatos. Tentamos encontrar uma desculpa
conveniente qualquer para interromper o processo e desistir da árdua tarefa.
Porém, nos Verba Seniorum, lemos sobre o abade Amonas, que passou catorze anos
orando para superar a raiva, ou melhor, para se libertar dela. Lemos também
sobre o abade Serapião, que vendeu seu último livro, uma cópia do Evangelho, e
deu o dinheiro recebido aos pobres, ou seja, "vendeu o próprio livro que
lhe dizia para vender tudo que tinha e dar o dinheiro aos pobres". Outro
abade censurou severamente alguns monges que foram responsáveis pela prisão de
um grupo de ladrões e, depois disso, os eremitas, envergonhados, entraram na
cadeia à noite e libertaram os prisioneiros. Em outras ocasiões vemos abades
negando-se a repreender um ou outro delinqüente, como o abade Moisés, o grande
e gentil negro, que entrou na assembléia carregando uma cesta cheia de areia,
deixando-a vazar pelas fendas. E disse: "Meus pecados estão vazando sem
que eu os veja, e hoje estou aqui para julgar os pecados de uma outra
pessoa!"
Se
esses protestos eram feitos, é claro que havia algo contra o que se protestar.
No final do século V, Cétia e Nítria tornaram-se cidades monásticas
rudimentares, com leis e punições. Três chicotes pendiam em uma palmeira no
lado de fora da igreja de Cétia: um para punir monges delinqüentes, outro para
ladrões e um terceiro para vadios. Porém, havia vários monges, como o abade
Moisés, que não apoiavam esse tipo de regra. Tais monges eram os santos,
representavam o ideal do deserto "anárquico" primitivo. Talvez o
exemplo mais memorável de todos seja o dos dois irmãos que viveram juntos por
anos sem brigar, e que decidiram "discutir como todos os outros homens",
mas simplesmente não conseguiram.
A
oração era a essência da vida no deserto e consistia em salmodia (oração em voz
alta - recitação dos salmos ou partes das Escrituras que todos deveriam saber
de cor) e contemplação. Aquilo que hoje chamaríamos de oração contemplativa era
conhecido como quies ou "descanso". Este termo iluminador persistiu
na tradição monástica grega como hesykhia, ou "doce repouso". Quies é
um estado de absorção silenciosa auxiliada pela repetição suave de uma única
frase das Escrituras - a mais popular delas sendo a oração de publicano:
"Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende piedade de mim, pecador."
A forma abreviada desta invocação era "Senhor, tende piedade" (Kyrie
eleison) - repetida em silêncio centenas de vezes por dia até se tornar tão espontânea
e instintiva como a respiração.
Quando
Arsênio é instruído a fugir do cenóbio, ficar em silêncio e descansar (fuge,
tace, quiesce), trata-se de um chamado à "oração contemplativa".
Quies é um termo mais simples e menos pretensioso, e muito menos desorientador.
Adequa-se à simplicidade dos Padres do Deserto muito mais que
"contemplação", e predispõe a menos ocasiões para narcisismo e
megalomania. Praticamente não existia perigo de quietismo no deserto. Os monges
mantinham-se ocupados e, se o quies era a satisfação do que buscavam, o
corporalis quies ("descanso do corpo") era um dos grandes inimigos.
Traduzi corporalis quies como "vida fácil", para não passar a
impressão de que muita ação fosse tolerada no deserto. Não era. O monge deveria
permanecer tranqüilo e ficar o máximo possível em um único lugar. Alguns Padres
chegavam a desaprovar aqueles que procuravam emprego fora de suas celas, e
trabalhavam para os fazendeiros do vale do Nilo durante as temporadas de
colheita.
Por
fim, nestas páginas, encontramo-nos com diversas personalidades grandiosas e
simples. Embora os Verba sejam às vezes atribuídos a apenas um senex (ancião)
não identificado, muitas vezes são imputados ao nome do santo que os proferiu.
Encontramo-nos com o abade Antão, ninguém menos que Santo Antão, o Grande. Este
é o Pai de todos os eremitas, cuja biografia, escrita por São Atanásio,
estimulou em Roma inteira vocações monásticas. Antão era realmente o Pai de
todos os Padres do Deserto. Porém, o contato com seus pensamentos originais nos
faz lembrar que ele não é o Antão de Flaubert, tampouco encontramos aqui o
Pafnúcio de Anatole France. Antão, é verdade, atingiu a apátheia após longos e
espetaculares embates com demônios. No entanto, ao final, ele conclui que nem
mesmo o diabo era o mal pleno, visto que Deus não poderia ter criado o mal, e
que todas as Suas obras eram boas. Pode ser uma surpresa saber que Santo Antão,
ao contrário de todos, achava que o demônio tinha algo de bom em si. Isso não
era mero sentimentalismo. Mostrava apenas que não havia em Santo Antão muito
espaço para paranóia. Podemos refletir de maneira produtiva que o homem
massificado moderno é aquele que se voltou com toda sua paixão para projeções
fanáticas de todo o mal de si sobre "o inimigo" (quem quer que seja).
Os solitários do deserto eram muito mais sábios.
Assim,
nos Verba, encontramos homens santos como Santo Arsênio, o austero e calado
forasteiro que chegou ao deserto da longínqua corte dos imperadores de
Constantinopla, e que não deixava ninguém olhar seu rosto. Encontramos o gentil
Poimen, o impetuoso João, o anão, que queria se tornar "um anjo". Não
menos cativante é o abade Pastor, talvez o que apareça mais vezes. Seus ditos
caracterizam-se pela humildade prática, pelo conhecimento da fragilidade humana
e pelo sólido bom senso. Pastor, como sabemos, era muito humano e conta-se que
quando seu irmão de sangue começou a agir com frieza em relação a ele, e a dar
preferência a conversas com outro eremita, sentiu tanto ciúme que teve de ir
consultar um dos anciãos para reequilibrar seus pontos de vista.
Os
monges insistiam em permanecer humanos e "comuns". Isto pode parecer
um paradoxo mas é muito importante. Se pararmos para pensar um momento, veremos
que fugir ao deserto para ser extraordinário é somente carregar o mundo como um
padrão implícito de comparação. O resultado não seria outro que a
autocontemplação e a autocomparação com o padrão negativo do mundo
recém-abandonado. Alguns dos monges do deserto fizeram isso e o que conseguiram
foi a perda do equilíbrio mental. Os homens simples que viveram suas vidas até
uma idade avançada entre pedras e areia só o fizeram porque haviam ido ao
deserto para serem eles mesmos, para viverem seu eu ordinário, e para
esquecerem um mundo que os mantinha afastados de si mesmos. Não pode haver
outra razão válida para buscar a solidão ou para se afastar do mundo. Portanto,
deixar o mundo é, na verdade, ajudar a salvá-lo, salvando-se a si mesmo. Este é
o ponto final e fundamental. Os eremitas cópticos que deixaram o mundo, embora
estivessem escapando de um naufrágio, não pretendiam apenas salvar suas vidas.
Eles sabiam que eram incapazes de fazer algum bem aos outros enquanto se
debatessem no naufrágio. Porém, uma vez que conseguissem colocar os pés em
terra firme, as coisas seriam diferentes. Nesse momento eles não apenas teriam
o poder, mas a obrigação de trazer todo o mundo a salvo atrás deles.
Esta
é a lição paradoxal deles para os nossos tempos. Talvez fosse um pouco de
exagero dizer que o mundo atual precise de um outro movimento como aquele que
atraiu tantos homens para os desertos do Egito e da Palestina. O nosso tempo é
sem dúvida de solitários e eremitas. Porém, apenas reproduzir a simplicidade, a
austeridade e as orações daquelas almas primitivas não é a resposta mais
completa, nem a mais apropriada. Precisamos transcendê-los, e transcender todos
aqueles que, desde suas respectivas épocas, foram além dos limites que
estabeleceram. Devemos libertar a nós mesmos, da nossa própria maneira, do
envolvimento com um mundo que caminha para o desastre, com a diferença de que nosso
mundo é diferente do deles. Nosso envolvimento é mais completo. Nosso perigo é
muito mais urgente. Nosso tempo, talvez, é mais curto do que pensamos.
Não
podemos fazer exatamente o que eles fizeram. Porém, precisamos ser igualmente
meticulosos e inexoráveis em nossa determinação de quebrar os elos espirituais
e repudiar a dominação de compulsões externas para encontrarmos nosso
verdadeiro eu, para descobrirmos e desenvolvermos nossa liberdade espiritual
inalienável e usá-la para construir, na terra, o Reino de Deus. Não é este o
momento de especular o que está envolvido nessa grandiosa e misteriosa vocação.
Isto ainda é desconhecido. Para mim, basta dizer que é preciso aprender com
esses homens do século IV como ignorar o preconceito, desafiar a compulsão e
penetrar sem medo no desconhecido.
Thomas Merton
A Sabedoria do Deserto, Ed. Martins Fontes
A Sabedoria do Deserto, Ed. Martins Fontes
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