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terça-feira, 11 de setembro de 2012

A Cristiada; México 1926-1929



                                                   Cristeros apresentam as armas em honra do Santíssimo Sacramento,
                                                   durante a celebração da Santa Missa, no sul de Jalisco



 
Cheguei ao México em 1965, com 23 anos. Naquele momento, o conflito religioso em sua etapa armada –que teve seu ápice entre 1926 e 1929– era um acontecimento ainda recente. Além disso devemos considerar que uma pequena guerrilha continuou operando até 1942, quando a Igreja deslegitimou todas as sublevações armadas por motivos religiosos, entende-se que o assunto da Cristiada ainda era um tema muito sensível para a memória coletiva. O então arcebispo da cidade de México, Miguel Dario Miranda, mais tarde ungido cardeal – vivera a perseguição religiosa, a sublevação dos cristeros, e de novo a perseguição religiosa que veio depois–, dizia-me que a brasa estava ainda acesa sob as cinzas e que bastaria um simples sopro para provocar uma chispa e reavivar o incêndio.

A Igreja não falava disso em público, nem sequer nos seminários. Na mesma história da Igreja mexicana se evitava o capítulo da Cristiada, ou era abordado com tal prudência que acabava caindo no ridículo histórico. Eu me lembro muito bem da surpresa que tive em 1968 em Ponte Grande, Jalisco. Ali, no estado que foi epicentro da sublevação armada, estava o seminário da Companhia de Jesus, onde eu estava trabalhando porque havia um importante arquivo que os jesuítas me abriram generosamente, diferente do governo, que nesse momento não me permitira conferir nenhum arquivo, e das instâncias oficiais da Igreja. Um dia alguns jovens estudantes aproximaram-se de mim e me perguntaram por que passava todos os fins de semana fechado, trabalhando com textos, cadernos e documentos. Conversei com eles sobre a minha pesquisa sobre a Cristiada, e percebi que não sabiam absolutamente nada, nada, apesar de viverem numa região que havia sido um dos epicentros da guerra. Então, com licença do diretor, dei uma conferência para os seminaristas. Naquela ocasião também fiquei estupefato pela total ignorância sobre a matéria. Conto isso para explicar como eram as coisas há quarenta anos.

Não sou a favor do esquecimento, e posso dizê-lo com a consciência tranquila, depois de ter trabalhado como historiador para que os cristeros ocupem o lugar que lhes corresponde no século XXI e na história da Igreja. Mas, mesmo assim, não quero que essa memória sirva para perpetuar uma cultura do conflito e das divisões entre os mexicanos. A grande guerra abrangeu o verão de 1926 até 1929, prolongando-se depois numa interminável guerrilha durante outros dez anos.

A Cristiada foi uma prova terrível para o povo mexicano, os sofrimentos foram enormes para três gerações. Se é justo que a memória cultural deva ser conhecida, conservada e até esses fatos transmitidos, o ódio e o rancor não devem, em compensação, ser cultivado.

Há quarenta anos, quando começava minha pesquisa, os cristeros não existiam para a esquerda; ou bem, apesar de se reconhecer sua reconhecia existência física, eram paramilitares de direita, guardas brancos dos latifundiários ou, no melhor dos casos, peões estúpidos ou trabalhadores rurais manipulados pelo clero e proprietários para impedir a reforma agrária no México.

Hoje, historiadores e sociólogos de diversas tendências políticas- refiro-me aos minimamente sérios- reconhecem que a Cristiada foi um movimento popular e que o aspecto religioso era uma motivação importante e sincera da insurreição.

Meu editor é de esquerda: Século XXI é a editora dos grandes clássicos marxistas. Foi corajoso em 1973 quando publicou meu livro, que não teve resumos nem promoção. Mas assim como a água encontra pouco a pouco o caminho para a superfície, a verdade vai abrindo caminho na selva dos preconceitos e aproximações. Hoje, a Cristiada já está na vigésima primeira edição.


O PESO DO FATOR RELIGIOSO NA SUBLEVAÇÃO

A fé é um bem material muito concreto. Mas, também é verdade que em todo conflito destas proporções –tanto em duração como em extensão– não há só uma causa. Outros fatores entram em jogo, em geral concomitantes, que se transformam ao entrar em contato uns com outros. Um determinado conflito religioso, em certo momento histórico não tem os efeitos devastadores que reveste em outro momento, quando enfrenta uma determinada situação política nacional ou internacional. Num regime democrático, por exemplo, podemos ter confrontos de profundidade religiosa, muito ásperos, sem chegar a uma sublevação.

Para algumas pessoas o fator religioso foi a única causa que determinou a insurreição armada. Para outras, a perseguição religiosa foi um pretexto: eram bandidos, políticos, revolucionários, que naquele momento estavam derrotados ou marginalizados, e viram no conflito religioso a ocasião para um desquite. Poucos, na verdade foram combater com os cristeros e nem sequer eram cristãos. Para muitas pessoas, no entanto, a suspensão do culto em agosto de 1926 foi a gota que derramou o copo: pessoas que durante muitos anos vinham sofrendo o caos da Revolução Mexicana e que o teriam seguido suportando; ou outros que até aquele momento não estavam em absoluto mobilizados, organizados, e muito menos sublevados. Para estes, o fator religioso foi decisivo. Sem ele, não haveria sublevação armada. O presidente Plutarco Elías Calles não previra as conseqüências quando pôs em marcha o mecanismo que levou à rebelião dos cristeros e a uma interminável e trágica guerra. Nem sequer o Papa sabia disso; o próprio governo da Igreja universal –a Cúria Vaticana– estava tão dividido como a Igreja mexicana. Os bispos locais não sabiam o que fazer diante da nova situação. Os governadores revolucionários, por sua vez, estavam divididos. O de Jalisco, Barba González, pede audiência ao presidente Calles em julho de 1926 quando o conflito está começando, e ocorre um diálogo mais ou menos com o seguinte teor:

Barba González: "Senhor Presidente, estou muito preocupado com o rumo que está tomando o conflito religioso; as pessoas vão se rebelar".

Calles: "Não, não. Os católicos não se rebelarão. A maioría está formada por mulheres e velhos que acreditam no além por medo da morte".

Barba González: "Não, senhor Presidente, tenho certeza que em Jalisco é diferente; os católicos são bravos".

Calles: "Jalisco é o galinheiro da República".

E Barba González comentará em suas memorias: "Que galos sairam daquele galinheiro!"

Calles: "Se eles se rebelarem, será melhor para nós e pior para eles, nós acabaremos com eles de uma vez por todas".

Depois o presidente se dirige ao general que estava presente, o temível Amaro, secretário da Defesa Nacional.

Calles: "General, nós acabaremos com eles em quanto tempo?"
Amaro: "Em três semanas, general".

E Barba González comenta: " Deus queira que não sejam tres años".

Levaram exatamente três anos, não para esmagá-los, senão para negociar os " acordos".

No verão de 1926, a Igreja decidiu suspender o culto nos templos como resposta à lei Calles, que, efetivamente, era inaceitável para quem tinha a responsabilidade do governo dos católicos mexicanos. Entre outros pontos, a lei estabelecia que nenhum sacerdote poderia oficiar uma cerimônia religiosa sem ter sido previamente registrado na Secretaria do Governo Federal, regional e inclusive municipal. Para entender a periculosidade desta disposição deve-se ter presente que a lei Calles chegou um ano depois da tentativa de cisma promovido pelo governo. Por isso Roma não permitiu que os bispos mexicanos acatassem essa lei.

A Cristiada foi uma guerra que chegou a mobilizar cinquenta mil combatentes, com forte apoio popular. Emiliano Zapata não teve mais de dez mil homens; Pancho Villa, vinte mil em seu apogeu; ambos são mundialmente famosos; os cristeros, não, sendo comparados com os camponeses católicos da Vandea, a esses "chuanes" que a Revolução Francesa não conseguiu vencer. Napoleão teve de fazer a paz com a Igreja para desarmá-los. Ocorreu a mesma coisa com os governos anticlericais da Revolução Mexicana. Em 1929, com mediação internacional, os "acordos" são concluidos, restabelece-se o culto e os cristeros voltam para casa. Mas em 1931-1932, um rebote anticlerical desata uma verdadeira perseguição religiosa (condenada pela Liga das Nações) provocando uma segunda guerrilha católica (proibida pela Igreja). Toca ao presidente Lázaro Cárdenas o papel pacificador de Napoleão: em 1938, o conflito religioso termina de maneira definitiva.
 
Autor: Jean Meyer. Artigo publicado na revista Criterio, www.revistacriterio.com.ar 

Fonte: Mirada Global

 
 

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