O Concílio de 381, no Oriente, em Constantinopla, afirmou a
origem divina do Espírito Santo dizendo que ele "procede do Pai". Logo em
seguida, na teologia latina, Santo Ambrósio e Santo Agostinho inauguraram uma
tradição que afirmava ser o Espírito procedente do Pai e do Filho. Na Espanha,
na França de Carlos Magno e em Roma, no início do segundo milênio, introduziu-se
no Credo, na liturgia, a expressão: "O Espírito provém do Pai e do Filho". O
oriente não só considera errado porque assim o Espírito teria duas origens e
Deus mesmo estaria dividido em duas origens, mas se contrapôs acrescentando o
contrário: "O Espírito procede somente do Pai".
No ocidente houve sempre a tendência ao "cristomonismo": O
Filho provém do Pai, e o acento na divindade de Cristo parecia ser suficiente
para tudo, ficando o Espírito diminuído na liturgia, na teologia, na consciência
da Igreja. Não se percebia mais o quanto era importante a presença e a atuação
do Espírito Santo na vida e nas ações de Jesus, em sua páscoa e também em sua
Igreja: os seguidores de Cristo devem fazer a mesma obra dele, e por isso a
Igreja acabou acabou fortalecendo exageradamente as instituições e regras ao
invés de confiar no Espírito. Esta é a acusação que faz a Igreja Ortodoxa.
Mas a volta à teologia do Espírito Santo, a consciência de sua
presença e atuação em Cristo, na Igreja, na sociedade e na Criação, não dispensa
a íntima relação que o Espírito tem com o Filho. Pois enquanto divino, o
Espírito provém do Pai, causa e origem de toda divindade, como afirmava o
Concílio de 381. Mas enquanto forma de ser pessoa, de presença e de atuação, é o
Espírito tanto do Pai como do Filho, pois o Pai não seria Pai se não houvesse o
Filho. É o Espírito que dá a um a paternidade e a outro a filiação. Para nós, é
o Espírito do Pai que nos estende a paternidade que Deus Pai é para o Filho, e é
Espírito de Cristo, o Filho, que nos inclui na sua filiação em relação ao Pai e
assim nos salva. É Espírito de filiação que, nos introduz na Trindade como
filhos de Deus: "Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos
de Deus (...) Recebemos um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos Abba!
Pai! O próprio Espírito se une ao nosso espírito a fim de testemunhar que somos
filhos de Deus. E se somos filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e
co-herdeiros de Cristo" (Rm 8,14-17)
O Rosto de Deus
Nas discussões para encontrar uma fórmula que contemple tanto
as razões dos orientais com as dos ocidentes, tanto dos ortodoxos, dos católicos
e de evangélicos, afirmou-se que o Espírito provém "principalmente" do Pai e
"comunitariamente" do Filho: a fonte, o princípio, é o Pai . Mas o Pai só é
Pai como Filho e o Filho só é Filho porque está relacionado filialmente com o
Pai. Assim, o Espírito tem um "modo de ser", determinado "rosto", um certo
"sentimento", que é o rosto do Filho em relação ao Pai e o rosto do Pai em
relação ao Filho.
Mas há mais alguns motivos, muito práticos, para mantermos a
fórmula dos latinos, que se caracterizam pela técnica ao afirmarem que o Filho,
Jesus Cristo, participa com o Pai da origem do Espírito, e compreendendo assim
que a Segunda Pessoa da Trindade entra no mistério original fontal de Deus, uma
vez que o Filho é "consubstancial" ao Pai, se pode relacionar tanto o Espírito
como o Pai com a aventura da encarnação, do sofrimento e da morte do Filho. Para
toda a Trindade, isso significa renúncia de si e dom de si, esvaziamento de si e
paciência para suportar o mundo e salvá-lo somente com o poder do amor e sem
qualquer intervenção.
É a kenosis do Filho, seu esvaziamento divino e sua
humanidade servidora até a morte, que desvenda o mistério de Deus Pai e a
onipresença material do Espírito. O Filho é o canal, a medição com que o
Espírito nos torna Filhos de Deus Pai. Tudo isso, sem nos retirar dos
compromissos terrenos, da imortalidade e da dor, e sem nos elevar para as nuvens
de um espiritualismo alienante.
A teologia judaica havia compreendido algo disso ao considerar
a criação como um espaço em que Deus renuncia a sua onipresença para deixar um
vazio - zim-zum - em que chamaria criaturas à existência sem serem meras
"partes" de Deus. Sem cordão umbilical, como que vindas "do nada", se tornariam
verdadeiramente suas livres interlocutoras. Por outro lado, Deus mesmo não
permanece no além, separado de suas criaturas. Através da onipresença
misericordiosa e material - makôm - e através do envolvimento maternal da
misericórdia - shekináh - Deus deixa a altura de seu mistério para se
inclinar e envolver suas criaturas e seu povo ameaçado. Assim Deus primeiro "se
contrai" para dar espaço, e depois "sai de si" para vir morar com suas
criaturas. É um Deus voltado para fora de si, que não é narcisista nem ídolo a
exigir atenções das criaturas. É Deus todo atenção e cuidado: Deus é Espírito,
mas se aproxima de nossos corpos e se torna corpo para estar conosco.
Nessa mesma direção se pode interpretar hoje a afirmação de que
o Espírito provém do Pai e do Filho. Jesus de Nazaré, o Filho de Deus
vivenciando a condição de humildade, que viveu uma espiritualidade muito terrena
e corporal, empoeirando os pés no meio do povo, é o canal e a forma concreta
pela qual o Espírito de Deus está conosco e nós estamos com Deus. Nada de voar
para as nuvens, para um espiritualismo desencarnado ou para um liturgismo ritual
e estético. A nossa perfeição de Filhos do Pai não consiste em sermos puros
espírito, mas em amarmos nossos irmãos em carne e osso, com a mesma
condescendência e misericórdia que Deus mostrou em Jesus (cf. Mt 5,43-48)
Os orientais correram o risco de se enrijecer em solenes
liturgias, numa estética e simbologia fascinantes, separando os rituais da vida
comum e da prática social. Os latinos correram o risco contrário, de
sobrecarregar de instituições e de muitas atividades. Uma boa teologia do
Espírito Santo ao lado de uma boa cristologia e uma eclesiologia iluminada por
ambas, ajuda a trilhar o caminho de Jesus com uma experiência trinitária: "Jesus
é o Caminho, a Trindade é a passagem".
E assim como se pode afirmar que "o Espírito provém do Pai e do
Filho", pode-se afirmar que "o Espírito provém do Pai e do Espírito"? Vamos
examinar esta possibilidade e suas conseqüências.
O Filho provém do Pai e do Espírito?
Aprendemos da Bíblia que o Espírito Santo é o Espírito de Deus.
No Novo Testamento, sobretudo em João e nas cartas de Paulo, o Espírito Santo é
o Espírito do Pai e do Filho. É ele que o próprio, estando junto do Pai, nos
envia como herança após sua vida terrena. Se compreendêssemos que o Espírito
provém de Cristo, do Filho, sem compreender também o contrário - que o Cristo
provém do Espírito - não levaríamos a sério a encarnação do Filho e o
esvaziamento de sua divindade, como nos diz a carta ao filipenses (cf. Fl
2,6-11). Cairíamos na tentação de atribuir a causa daquilo que Jesus fez à sua
divindade, ao invés de compreendermos que a causa é o Espírito do Pai que habita
nele. Os prodígios em favor da salvação, a liberdade de servir passando além das
leis, a paciência e a sabedoria de Jesus, provém do Espírito que está nele. É
fácil e cômodo pensar que Jesus teria feito milagres, vencido a tentação sem
pecar; sofrido sem graves riscos; ressuscitado porque é Deus! Se é a divindade
de Jesus limitada, frágil e humilde, não é considerada seriamente, seus exemplos
são inúteis, o seu seguimentos é impossível, e ele mesmo se torna um mito.
A história que os evangelhos nos contam é exatamente o oposto:
o Filho se encarna abrindo mão de privilégios divinos. O extraordinário de Jesus
tem dois aspectos: é o Filho de Deus em nossa total humanidade, mas também é
"cheio de Espírito" (Lc 4014). É isso que precisa ser sublinhado: Jesus é o
Cristo, reconhecido como nosso Salvador e como Filho de Deus, porque está
envolto pelo Espírito de Deus.
A concepção do Filho de Deus neste mundo, no seio de Maria, é
obra do Espírito de Deus que envolve Maria como a nuvem do deserto envolvia e
fazia viver o povo de Deus (Lc 1,35). Assim, o Filho "nasceu do Espírito Santo e
da Virgem Maria". É o "seio de Deus", que é o Espírito Santo, tomando em aliança
o seio de Maria para a humanização do Filho de Deus. Que o Filho seja humano,
isso é obra do Espírito. Essa é uma indicação para nós: é o Espírito que nos
ajuda a ser humanos, como tornou humano o próprio Deus.
Lucas (Lc 2,40;52) repete que Jesus crescia em idade, sabedoria
e graça, narrando como prova o episódio do Bar Mitzwáh (Filho da
Lei), quando ele, com doze anos, foi ao templo e se ocupou da Lei no círculo dos
mestres. A graça é a presença do Espírito, "graça incriada" e dom de Deus em
pessoa que se torna origem de todos os dons e de todas as "graças criadas" em
nossa condição humana.
Os evangelhos sinóticos são unânimes em narrar a experiência de
Jesus depois do batismo solidário com os penitentes: sobre ele repousa o
Espírito do Pai no símbolo da pomba, símbolo feminino da força, do movimento e
do calor de Deus criador e fiel sustentador da criação. Conforme Lucas
"impulsionado pelo Espírito" Jesus percorre a Galiléia, passando por sua Nazaré,
onde é identificado com o que dizia o profeta Isaías: "O Espírito de Deus
repousa sobre mim pois me consagrou, e por isso me enviou a dar boa notícia aos
pobres, redimir os aprisionados, recuperar a visão aos que não vêem, restituir a
liberdade aos oprimidos, proclamar o tempo da graça" (Lc 4,18-19).
Quando se abate a confusão e a crise em torno da missão e até
da pessoa de Jesus, por força de tantos fatores como os interesses ameaçados ou
a ambição, Jesus sobe para a oração e recebe a confirmação do Pai com o
envolvimento do Espírito no símbolo da nuvem, a mesma que envolveu o povo de
Deus no deserto e no templo, dando proteção confiança, defesa e orientação. Mais
uma vez, em hora difícil e decisiva, o Espírito socorre a humanidade de Jesus -
e a nossa também.
Há um momento em que a força do Espírito é pura essência, pura
capacidade de entrega e de perseverança: desde a tremenda oração de Jesus no
Getsêmani até a entrega da sua vida na cruz: Ele "pelo Espírito Eterno se
ofereceu a si mesmo" (Hb 9,14). E do silêncio doloroso e alegria que o Espírito
coloca em todas as bocas: Jesus "segundo o Espírito de santidade, com poder por
sua ressurreição dos mortos, estabelecido Filho de Deus" (Rm 1,4). Se Jesus
enfrentasse heroicamente a morte e tomasse ele mesmo a iniciativa da sua própria
ressurreição por causa da sua divindade, de novo falsearia a sua humanidade,
seria um herói mítico, não caminho e modelo de nossa páscoa pela morte e
ressurreição. É o Espírito pascal que possibilita a páscoa de Jesus e a nossa,
que dá a paciência para passar pela tremenda morte e dá a energia da
ressurreição.
Tudo isso nos leva à conclusão: antes de falarmos do "Espírito
de Cristo", é necessário falar do "Cristo do Espírito". O Espírito vem antes,
desde o seio de Maria, acompanhando o Filho em sua humanidade, possibilitando a
sua missão e a sua páscoa, e vem depois, desde Pentecostes, com as marcas do
Filho, para que todos possamos continuar o caminho de Jesus. O Espírito é a
graça do Pai que o próprio Filho recebeu para ser, na fragilidade humana, Filho
de Deus e irmão primogênito de toda criatura. Sem o Espírito, tal mergulho em
nossa condição mortal seria impossível. Assim como o Espírito provém do Pai e do
Filho, o Filho provém do Pai "e do Espírito", e isso possui duas conseqüências:
possibilita ao Filho renunciar ao exercício da divindade para se aventurar na
pobreza humana e permite aos pobres mortais receber a riqueza do Espírito de
Jesus. "Por causa de vós se fez pobre, embora fosse rico, para vos enriquecer
com a sua pobreza" (2Cor 8,9). A verdadeira riqueza que Jesus porta é o
Espírito.
O que constamos nos evangelhos é o que se manifesta da vida
íntima de Deus. É a "expiração" amorosa do Espírito - a procedência do Espírito
- que faz Deus ser "Pai" e "Filho", pois é nesse amor que procede o Filho - a
geração eterna do Filho. E, finalmente, é por causa de ambas as procedências num
entrelaçamento que se dá num único eterno movimento, que Deus é "Pai". Deus não
seria Pai se não tivesse um Filho no Espírito. Deus somente é Pai porque sua
paternidade não provém de si mesmo, mas da relação de paternidade e filiação na
expiração do Espírito.
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