
Reconstruir um dia no cotidiano de Jesus, surpreendê-lo em Nazaré, em seu dia-a-dia normal, ou no correr de sua vida pública significa, antes de mais nada, ouvir sua voz. A palavra é o aspecto que mais caracteriza uma pessoa em seu cotidiano. A palavra que cumprimenta, recebe e conversa; a palavra que exprime alegria e paz de espírito, ou indignação e impaciência; a palavra que se transforma em ordem, proibição, pergunta ou dúvida; a palavra que reza — a palavra informa, mais que qualquer outra coisa, sobre a riqueza da vida, a profundidade do coração, o brilho da inteligência, a força de vontade de uma pessoa. Por isso gostaríamos de ouvir a voz de Jesus, suas próprias palavras.
Disso, os evangelistas transmitiram poucos
testemunhos: repetem na língua original uma ou outra palavra de Jesus, que
tenha ficado profundamente registrada na memória dos apóstolos, quando
descrevem o Mestre, “O qual andou de lugar em lugar fazendo bem e sarando todos
os oprimidos do demônio”Atos dos Apóstolos (10,38). Marcos — segundo a
tradição, discípulo e intérprete de Pedro — registrou três expressões:
“‘Talitha qûm’, que quer dizer: Menina eu te
mando, levanta-te” (5.41): é a palavra carregada de poder, dita à jovem filha
de Jairo, morta há pouco, e a quem Jesus chama de volta à vida; “Ephpheta, que
quer dizer, abre-te” (7,34): é a palavra dita ao surdo-mudo a quem Jesus fez
ouvir e falar;
“Abba, Pai” (14,36): é a invocação filial com a
qual se dirige a Deus, revelando sua intimidade de filho e a proximidade do pai.
Podemos também citar as orações de Jesus na
cruz, reproduzidas por Marcos e Mateus: “Eloí, Eloí” (em Mateus, “Eh, Eh”)”
lemá sabachtaní?’ (Mateus 27,46; Marcos 15,34); é o início do Salmo 21. que
exprime angústia, dor, perplexidade, mas ao mesmo tempo esperança e confiança.
A partir dessas citações somos levados a crer
que a língua normalmente falada por Jesus era o aramaico. Além do mais, o
quadro histórico que se pode fazer da época em que viveu nos faz chegar à mesma
conclusão, visto que os hebreus do século I. na Palestina, falavam o aramaico
em suas variantes dialetais judaicas ou galilaicas.
De acordo com o contexto histórico em que Jesus
viveu, devemos mencionar outras duas línguas com as quais ele devia ter certa
familiaridade: a dos textos sagrados, isto é, o hebraico, e a das relações mais
genéricas, o grego. A primeira era a “língua franca”, usada no comércio, na
administração, na política.
O grego também permitia que os hebreus
provenientes das mais diversas partes do mundo helenístico e do império Romano
se comunicassem entre si. Era difundido não só no Império Romano do Oriente
como no do Ocidente e na própria capital, Roma. Se Roma e seus administradores
adotavam o latim como língua oficial, o mesmo não ocorria no Oriente, onde só
os funcionários administrativos o empregavam, jamais o povo.
O hebraico, embora já não fosse falado na época
de Jesus, continuava a ser a língua dos textos sagrados lidos nas sinagogas aos
sábados e era também a língua erudita dos sábios de alguns grupos religiosos,
como os essênios. O hebraico bíblico é um dos dialetos do grupo de línguas
semitas norte-ocidentais, que se difundiram na região sírio-palestina;
compreendia a língua de Biblos e de Ugarit, o fenício, os vários dialetos
cananeus. o hebraico, e, podemos acrescentar hoje, a língua de Ebla
(antiqüíssima cidade dos séculos XXIV-XVI a.C.. que os arqueólogos descobriram
recentemente na Síria).
O hebraico clássico é a língua de lsaías, isto
é, o dialeto da Judéia e de Jerusalém no período da monarquia. Transformou-se
em língua literária por ter sido adotado pelos profetas e redatores das
tradições de Israel.
Do período do exílio em diante, os hebreus
abandonaram seu idioma e passaram a usar o aramaico que se aproxima muito do
hebraico, ou melhor, que é tronco comum de vários “dialetos-línguas” semitas, e
que depois se tornaria a língua vulgar e literária do vasto império persa dos
Aquemênidas.
Apesar do predomínio, a partir do século II da
cultura helenística e da língua grega, o aramaic,. o idioma dos hebreus, na
variedade de suas inflexões e caracterizações dialetais (cf. Mateus 26.73),
continuou a ser falado na região sírio-palestina. Jesus falava aramaico, vimos
que Marcos conservou algumas de suas expressões originais nessa língua. Mas
será que Jesus conhecia o hebraico bíblico, a língua dos textos sagrados? Será
que entendia a leitura da Lei e dos Profetas, feita em hebraico, na sinagoga?
Ou precisava de uma tradução que lhe permitisse compreender esses textos?
Façamos uma analogia: o latim era (e é) a língua dos textos litúrgicos e dos
documentos da Igreja; não é uma língua falada, mas estudada, compreendida e
usada em certos ambientes, por determinadas pessoas. O mesmo devia ocorrer com
o hebraico bíblico.
Ora, Jesus é freqüentemente chamado Mestre (Rabi)
nos Evangelhos: assim o fazem os discípulos (Marcos 9,5; 11,21; João
1.38;4,31), os quais escolheu e ensinou (Mateus 5,2; Marcos 3.13-1 8), as
pessoas em geral e os próprios rabinos (João 3,2; 6.25). Jesus recebeu o título
de rabi graças a uma posição adquirida de fato em relação aos discípulos e às
pessoas, mas também devido a uma posição reconhecida publicamente, sobretudo
nas sinagogas.
Supõe-se que Jesus, depois do bar-mitzva — isto é, depois dos treze
anos —.quando adolescente, não podendo seguir uma escola rabínica, como Paulo
Atos dos Apóstolos (22,3), tenha freqüentado a escola anexa à sinagoga e
aprendido a ler a Escritura, a declamá-la. a traduzi-la e a comentá-la. O
episódio da sinagoga de Nazaré como nos relata Lucas (“Foi a Nazaré, onde se tinha
criado, e entrou na sinagoga, segundo o seu costume, em dia de sábado, e
levantou-se para fazer a leitura.” 4.16); o fato de Jesus com freqüência
ensinar nas sinagogas durante sua vida pública; o próprio titulo de rabi
atribuído a ele não só pelos discípulos mas também pelo povo e até pelos
escribas — tudo isso nos leva a crer que conhecesse o hebraico clássico, a
língua dos textos sagrados com a qual se proclamava a palavra de Deus nas
sinagogas, antes de ser traduzida para os fiéis.
Cabe ainda perguntar se Jesus falava a língua
grega, o grego helenístico, chamado koiné,
que desde a conquista de Alexandre Magno tinha se tornado, no Oriente, o
idioma mais usado no comércio e na administração. O latim língua oficial dos
dominadores romanos, também era falado, ou ao menos entendido.
Quanto a esse latim, há escassos vestígios de
seu uso na Palestina do século I; deve ter sido adotado somente em registros
oficiais e nas relações administrativas com Roma. O latim está presente nas
inscrições dos miliários das estradas militares; nas inscrições dos prédios
públicos, como a encontrada em Cesaréia Marítima, com o nome do procurador
“Pontius Pilatus”; na inscrição bilíngüe, em grego e latim, no templo de
Jerusalém, que proíbe o ingresso aos não-hebreus para além do pátio dos fiéis;
ou ainda no aviso da condenação de Jesus, escrito em hebraico, latim e grego,
como nos relata João (19,20).
Já o grego era um idioma muito difundido, falado
tanto pelos hebreus da diáspora, que não conheciam mais o aramaico, quanto pelos
povos de cultura helenística, como os habitantes da Fenícia e da Decápohe; era
a língua de intercâmbio entre as populações regionais presente em quase todas
as moedas e inscrições, em muitos nomes próprios, até mesmo de hebreus, nos
escritos de hebreus helenistas. A língua das cortes de Filipe e de Herodes
Antipas devia ser o grego, empregado também nas relações entre o procurador e a
autoridade local, o sinédrio. Para os hebreus esse idioma era tão comum que os
hebreus de Jerusalém se admiraram porque Paulo também falava hebraico Atos dos
Apóstolos (22,2).
A Galiléia sempre foi uma região de população
mista (a “Galiléia das nações” de Isaías (9.1); a “Galiléia dos gentios” de
Mateus (4,15); além disso, era cortada por inúmeras estradas que permitiam ampla
comunicação; e, finalmente, limitava-se com a Fenícia e a Decápole, onde
predominava o grego — desses três fatores pode-se deduzir que o grego era
bastante difundido• entre os galileus e, conseqüentemente, em Nazaré.
É provável que Jesus conhecesse um pouco de
grego, tanto quanto se aprende quando uma língua é relativamente generalizada
no local em que se vive, servindo de código às comunicações cotidianas. O
Messias atravessou regiões como a Fenícia e a Decápole, onde, como vimos,
falava-se grego; curou a filha da mulher gentia “siro-fenícia de nação” (Marcos
7.26), e é de se supor que o diálogo entre ele e a mulher tenha sido em grego.
Segundo os evangelistas, no interrogatório ao
qual foi submetido Jesus, Pilatos inquiriu-o diretamente: “Tu és o Rei dos
Judeus? Jesus disse-lhe: Tu o dizes” (Mateus 27.11; cf. Marcos 15.2; Lucas
23,3; João 18,33-34). Do extenso diálogo relatado por João (18,33-38),
infere-se que Jesus tenha respondido às perguntas do procurador que falava
grego, sem auxílio de intérprete.
Podemos dizer, portanto, que Jesus falava grego.
Mas a língua que estruturou sua vida, seu pensamento e seu coração, foi a
língua materna, o aramaico, juntamente com a de seus antepassados, o hebraico,
tal como se condensara no texto sagrado, do qual Jesus disse ser a
concretização.
O que lia Jesus?
A sinagoga era o centro da vida religiosa, a
casa onde se ouvia a palavra de Deus e onde se rezava. Em uma antiga inscrição
numa sinagoga, lê-se que a casa fora construída “para a leitura da Lei e para o
ensinamento dos preceitos”. Segundo a tradição, só podia ser usada para a
leitura da Lei escrita (a Tora), para a transmissão da lei oral (as tradições e
as interpretações efetuadas pelos rabinos) e para a pesquisa (para o
desenvolvimento da Lei e sua aplicação na vida prática). Por isso é chamada
também bêt hammidrash, a “casa da
pesquisa”.
A sinagoga constituía ainda o centro da vida
cultural de Israel. A tentativa de reconstruir o mundo cultural de Nazaré e de
Jesus segue, assim, um caminho que nos leva à sinagoga — se perguntarmos o que
lia Jesus, a resposta certamente será: o que se lia na sinagoga.
E nesse local se lia o texto sagrado — as parashoth, passagens da Lei. Sabe-se que
na época de Jesus o ciclo das leituras ainda não era fixo, existindo apenas uma
divisão provisória em ciclo anual e uma em ciclo trienal. O sefer hat-Torah, o rolo ou livro da Lei,
era tirado da arca santa (Aron haqodesh),
levado a um palco acima da balaustrada (bimah)
e colocado sobre o tebah (facistol);
um dos presentes lia, então, em voz alta, a parashah,
o capítulo da Lei. Aquele que cometesse um erro na leitura era substituído
por outro.
À leitura da Lei seguia-se normalmente a leitura
dos Profetas anteriores (aqueles que chamamos de livros históricos de Josué,
Juizes, Samuel e Reis) ou posteriores (os três profetas maiores e os doze
menores) e cabia ao leitor a escolha do trecho. Só mais tarde fixou-se a
seleção, com passagens estabelecidas chamadas haftarô.
A Tora era lida no idioma sagrado, o hebraico,
mas traduzida, pois muitas pessoas só conheciam o aramaico. Ao tradutor eram
transmitidas regras precisas: não deveria ler a tradução, mas ir traduzindo
cada trecho. Normalmente leitor e tradutor não eram a mesma pessoa. Mais tarde,
porém, as traduções passaram a ser escritas — destas foram conservadas algumas,
bem antigas que remontam à época do Novo Testamento. As traduções, bastante
livres, eram quase uma leitura exegética, em geral ampliada com aplicações e metodologias
tipicamente exegéticas revelando ainda hoje uma profunda espiritualidade.
Também as orações obedeciam a uma estrutura fixa
— eram feitas sempre em determinadas horas, imprimindo um ritmo ao dia.
Começava-se com o ofício noturno uma vez que o mundo foi criado a partir das
trevas (Gênesis 1,5). Eram, pela ordem: o ofício do arbit ou ma’ariv, ou
seja, do crepúsculo; depois, o ofício matinal, chamado saharit isto é. da aurora; e finalmente o vespertino, ofício de minhah que significa “oferta”, e que
ocorria na mesma hora do sacrifício no templo de Jerusalém.
Havia ainda as orações próprias das festas, que
eram formulários escritos utilizados livremente pelos fiéis, pois ainda não
eram fixos. A oração mais conhecida é a do rito pascal, o seder. No Evangelho de Marcos se encontra uma referência a essa
oração, quando, após a ceia da Páscoa, a última ceia. Jesus ofereceu pão e
vinho aos apóstolos, e depois, “cantando hinos, foram para o monte das
Oliveiras” (14.26).
Durante os ofícios, as orações não podiam ser
lidas. E, para que os fiéis pudessem aprendê-las de cor, os textos deviam ser
exaustivamente consultados, ao menos nas sinagogas; Jesus, com certeza, deve
tê-los manuseado com freqüência. Esses textos e o Livro dos Salmos formaram o
espírito de Jesus, voltado às orações e fortemente imbuído do sentido da
história que Deus travou com seu povo, cujas vida e teologia sempre foram
moldadas por festas e orações.
Se Jesus conheceu e manuseou escritos, estes
foram, sem dúvida, os textos das sinagogas: a Tora, os Profetas, os Salmos (cf.
Lucas 24,27-44), as traduções em aramaico dos livros sagrados, as diversas
orações. Será que conheceu outros? Impossível saber. É provável que, nas
sinagogas que freqüentava, em particular a de Cafarnaum, Jesus tenha tido acesso
a comentários e sentenças de rabinos ou de escolas, já que naquele tempo
começava-se a codificar, por escrito, a lei de Moisés. Esse material, mais
tarde, formará a literatura rabínica.
Será que Jesus entrou em contato com os escritos
dos essênios de Qumrân, os hinos, os comentários bíblicos e as regras daquela
comunidade? Não temos indícios, muito menos provas. Se fosse verdadeira a
hipótese de que João Batista era um essênio que abandonara a comunidade e a de
que os apóstolos João e André simpatizavam com o grupo, poder-se-ia supor uma
aproximação com os qumrânicos e seus escritos.
Concluindo, o fato é que Jesus, nos Evangelhos,
jamais é apresentado como um leitor, um estudioso dos textos, mas sim como
aquele que anuncia e ensina “com autoridade” (Marcos 1. 22-27).
Jesus sabia escrever?
Para nós, ler e escrever são duas habilidades
que andam de mãos dadas: quem lê, escreve. Mas nem sempre foi assim. Na
Antiguidade, a atividade de escrever requeria técnica e material apropriados, o
que significava ter à disposição um local para esse fim, com papiro, pergaminho
ou tábulas (placas de argila ou madeira, revestidas de cera), tinta e caneta —
e esse arsenal não era acessível a todos.
Se, para aprender a ler, a sinagoga era o lugar
mais indicado, o mesmo ocorria para aprender a escrever, pois nela se
encontrava o material necessário à transcrição dos textos sagrados lidos nos
ofícios religiosos. É provável que Jesus, ao freqüentar o templo judeu, tenha
aprendido não só a ler, mas também a escrever.
Só o Evangelho de João atesta o fato de Jesus
saber escrever: no episódio da adúltera, ele, em vez de responder à provocação
dos acusadores, inclinou-se e “pôs-se a escrever com o dedo na areia” (8.6). E
depois de ter contestado com as palavras: “O que de vós está sem pecado, seja o
primeiro que lhe atire a pedra” (8.7), “tornando a inclinar-se, escrevia na
terra” (8,8). O que escrevia? Palavras ou sinais?
Embora não afirme textualmente que escrevesse
palavras, o Evangelho nos dá algumas pistas nesse sentido. Desde a Antiguidade,
os exegetas vêm levantando diversas suposições. É significativa a alusão, em
Jeremias (17,13), onde se lê: “(...) os que se apartam de ti serão inscritos
sobre a terra; porque deixaram o Senhor, que é a fonte das águas vivas”. Ao
transcrever esse versículo de Jeremias, Jesus teria convidado os acusadores a
refletir sobre eles próprios e seus pecados. Quanto às palavras “tornando a
inclinar-se, escrevia na terra”, não faltou quem aí visse outra alusão à Lei,
precisamente ao Êxodo (23,7): “Fugirás à mentira. Não farás morrer o inocente nem
o justo (...)“. São apenas suposições; mas é possível que Jesus tenha escrito
alguma coisa referente à Lei e aos Profetas.
Examinados os indícios que os Evangelhos nos
dão, e também o ambiente histórico em que Jesus viveu, podemos responder às
questões que foram colocadas, não com absoluta certeza, mas certamente com boa
probabilidade de acerto.
Jesus falava aramaico como língua materna, em
suas variantes galilaicas. Entendia e lia o hebraico clássico, a língua do
texto sagrado, e também era capaz de traduzi-lo para o aramaico. Sabia grego e,
sempre que necessário, falava essa língua, quer com hebreus da diáspora, quer
com pessoas de origem grega ou latina.
Jesus conhecia e lia os textos lidos nas sinagogas: o texto bíblico da
Lei, dos Profetas, dos Salmos; textos com as orações cotidianas e festivas;
textos que formavam a incipiente literatura rabínica escrita. Jesus sabia
escrever, mas não era escriba de profissão: era o anunciador do Reino de Deus,
portador da palavra definitiva do Pai.
Obra
original: “La Storia di Gesù” – Rizzoli Editore S.p.A. – Milão – 1983
No Brasil:
Coleção “Jesus” – JB Indústrias Gráficas – Rio de Janeiro - 1986
Este Texto: Gabriele Miola
Professor de Sagrada Escritura do Seminário de Fermo (Ascoli
Piceno).
Um comentário:
Esta muito bonito seu blog Orly, PARABENS! Maria Julia
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